Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade, é parte integrante e fechamento do ciclo de investigação resultante da pesquisa cultural, Transgressão em 3 Atos, sobre os grupos teatrais pernambucanos Teatro Popular do Nordeste (TPN), Teatro Hermilo Borba Filho (THBF) e Vivencial. Parte dessa pesquisa foi publicada no livro Transgressão em 3 Atos – nos abismos do Vivencial, de Alexandre Figueirôa, Cláudio Bezerra e Stella Maris Saldanha, pela Prefeitura do Recife/Fundação de Cultura Cidade do Recife, em 2011.
Essa pesquisa historiográfica desdobra-se, em uma perspectiva artística, com a montagem dos espetáculos Os fuzis da Sra. Carrar, de Bertolt Brecht (direção de João Denys), e O Auto do Salão do Automóvel, de Osman Lins (direção de Kleber Lourenço), abrindo um diálogo entre a memória e a contemporaneidade, em que se faz referência às montagens anteriores, dos mesmos textos, pelo Teatro Hermilo Borba Filho (THBF) e pelo Teatro Popular do Nordeste (TPN), respectivamente.
Em Puro Lixo, o diálogo entre passado e presente é retomando e, nesse sentido, o seu processo de criação não se baseia necessariamente na montagem de um texto dramático já encenado pelo Vivencial. A princípio, o projeto seria a recriação teatral de contos de João Silvério Trevisan (cuja literatura serviu de suporte para algumas criações do grupo olindense), adaptados por Luís Augusto Reis. Como procedimento recorrente dos grupos teatrais dos anos 70, a utilização de textos não-dramáticos (contos, crônicas, artigos e notícias de jornal) parece ser o recurso mais adequado para esta “releitura” cênica.
Mas é na reportagem “Vivencial Diversiones Apresenta: Frangos Falando para o Mundo”, publicado no Lampião da Esquina (Rio de Janeiro, ano 2, n. 18, p. 15, nov. 1979), que Luís Reis encontra material dramatúrgico capaz de evocar e dialogar com o legado cultural do Vivencial. O artigo de Trevisan torna-se o eixo do roteiro dramatúrgico de Luís Reis, que fragmenta, seleciona e reordena diversas partes da reportagem, entrecortando-a com citações e paródias de espetáculos e de figuras emblemáticas do grupo, assim como faz referências a artistas e obras recentes da cultura contemporânea. Mais que um texto acabado, Reis cria uma estrutura dramatúrgica que institui um certo “estado de espírito” entre atores, encenador e demais colaboradores. A ambição do dramaturgo e dos demais artistas envolvidos em Puro Lixo é instaurar no processo de criação o que Bernard Dort chama de “estado de espírito dramatúrgico”.
Para Bernard Dort, em L’État d’Esprit Dramaturgique (O estado de espírito dramatúrgico, ainda sem tradução para o português), a dramaturgia (em seu sentido amplo) pode ser considerada uma prática pedagógica, pois ela ensina um estado de espírito no qual os profissionais são convidados a tomar consciência de sua atividade: “O projeto dramatúrgico se elabora assim em comum. Não antes dos ensaios. Mas durante. Parte-se talvez de uma hipótese. De uma aposta sobre um sentido possível. Os ensaios vão confirmar ou rejeitar essa hipótese”.
Nesse sentido, foi preciso instaurar um espírito de grupo. Um grupo de estudos, um grupo de teatro, um grupo de artistas reunidos em torno de um projeto comum. Foi preciso também enriquecer a imaginação dos atores com referências do Vivencial e de sua época, do universo gay e do cabaré. Para tanto, assistem-se a documentários e a filmes: Sagrada Subversão, de Georges Meirelles; Dzi Croquettes, de Tatiana Issa; Tatuagem, de Hilton Lacerda; Priscila, A Rainha do Deserto, Stephan Elliott; Cabaret, de Bob Fosse; O Anjo Azul, de Josef von Sternberg. Leem-se alguns estudos e artigos sobre contracultura e transgressão, termos fundamentais para se pensar o Vivencial.
Cadengue ressaltava a necessidade de se trabalhar a capacidade de o ator contar uma história e, ao mesmo tempo, atrair o olhar do espectador pela qualidade de sua presença cênica. Cada ator deveria encontrar sua própria bicha e, para isso, recomendava-se que, nos ensaios na TV Universitária, eles trouxessem maquiagem, roupas e adereços femininos para experimentar em cena, assim como “praticar” em casa, andando de salto alto, por exemplo, para preparar e aprimorar seu corpo ao novo “suporte” de atuação. Alguns atores tornavam-se uma espécie de “guias” dos mais novos no caminho para encontrar o seu “modo particular” de “dar uma pinta”, tal qual uma relação de mestre e aprendiz nas tradições cênicas orientais.
Em minhas notas de ensaio, encontro o seguinte registro: “Relaxamento, desprendimento, frescura. O grupo precisa criar um clima de alegria, de confiança, de conversa, de cordialidade”. Para Cadengue, “o ator tem que ser intelectual no sentido de que todos pensam, seja com o corpo, seja com a intuição”. E ainda diz: “deve-se receber o público com tesão. Fazer o espetáculo com tesão. E, ao mesmo tempo, tornar o espetáculo um ato de desvelamento. Um ato de comunhão”.
Por sua estrutura, ao mesmo tempo aberta e rigorosa, o texto-roteiro de Luís Reis exige a intervenção e a apropriação dos atores que improvisam números musicais, falas e personagens, posteriormente incorporados à dramaturgia do espetáculo. Algumas cenas são acrescidas, cortadas ou adaptadas em função das necessidades da montagem, das discussões e questionamentos da própria equipe. Em certa medida, todos tornam-se dramaturgos do espetáculo, trabalhando sob a coordenação de Cadengue e a assessoria de Reis na forma final do texto. Busca-se a instauração de um estado de espírito dramatúrgico que deve repercutir para além do espetáculo, por meio da relação entre público e artistas.
O trabalho de encenação de Antonio Cadengue ganha uma feição particular a partir das provocações da dramaturgia e dos estímulos dos atores durante os ensaios. O encenador atua como propositor, coordenador e editor do processo criativo. Propõe outros intertextos visuais, verbais e conceituais (fora os já presentes na dramaturgia). Edifica com o elenco uma “estrutura básica do espetáculo”, em que o trabalho criativo dos atores (Eduardo Filho, Gil Paz, Marinho Falcão, Paulo Castelo Branco, Samuel Lira e Stella Maris Saldanha), a direção de movimento de Paulo Henrique Ferreira, os figurinos e adereços de Manuel Carlos de Araújo, a cenografia de Otto Neuenschwander e a trilha sonora de Eli-Eri Moura se justapõem e compõem novas camadas de sentido, criando uma estrutura polifônica que redimensiona o conceito original da encenação: “seja marginal, seja herói” que, por intermédio de Hélio Oiticica, retoma a herança tropicalista e antropofágica da qual o Grupo de Teatro Vivencial é tributário. Há o ímpeto da devoração que predomina durante todo o espetáculo e que ganha o final apoteótico no número musical “Eu Comia”.
A visão cênica de Antonio Cadengue é potencializada pela contribuição dos demais agentes criativos do espetáculo, garantindo a pluralidade de sentidos da obra, em sua ironia e pathos, e procurando traduzir, nos dias atuais, a beleza transgressora do Grupo de Teatro Vivencial.
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