Em um ano com lançamentos de Beyoncé, Taylor Swift, Ariana Grande, Dua Lipa, Katy Perry e outras artistas consideradas como parte do primeiro escalão do pop (as “A lists”), supor que seria Charli XCX a dona do álbum mais importante do ano poderia parecer como uma fanfic. Mas, com o Brat, a artista britânica não só deixou de ser cultuada por um nicho, conquistando as paradas musicais ao redor do mundo, como transformou o álbum em um fenômeno cultural que dominou o discurso dentro e fora da internet. E tudo isso sem comprometer sua visão artística – ou melhor, justamente por não fazer concessões e entregar um álbum 100% Charli: inventivo, provocador, sensível, caótico e transgressor.
Pensar a ascensão de Charli XCX ao mainstream é, também, refletir sobre as mudanças na cultura (e até na política) que culminaram em um ano complexo. Em 2023, Shaad D’Souza publicou no The New York Times o artigo “What Happens When a Pop Star Isn’t That Popular?” (O que acontece quando uma pop star não é tão popular?), refletindo sobre um grupo de artistas que, apesar de conseguir algum ou alguns hits, e de ter uma base de fãs fiel, não é necessariamente uma figura conhecida pelo grande público.
Seria a chamada “classe média do pop”, da qual fariam parte nomes como a própria Charli XCX, Sabrina Carpenter (outra artista que despontou em 2024, com hits como “Expresso” e “Please, Please, Please”), Carly Rae Jepsen, Ava Max, Kim Petras, entre outras.
Este artigo pontua que, naquele momento, as estrelas do pop não estavam mais dominando as paradas, cujo topo estava ocupado por nomes do country e do rap. E, curiosamente, conclui focando em Charli XCX e sua trajetória. D’Souza pontua que a artista sempre esteve ligada aos artistas experimentais do hyperpop e da música eletrônica experimental, mas também teve seus momentos de destaque no mainstream. Entre eles, o primeiro lugar nas paradas com “Fancy”, parceria com Iggy Azalea, e “I Love It”, com Icona Pop.
O jornalista destaca ainda que Crash, lançado no ano anterior, foi descrito pela britânica como sua aposta comercial, uma tentativa de brincar com as engrenagens do pop tradicional, na estética, sonoridade e nas estratégias de divulgação. E conclui destacando que, naquele momento, “Speed Drive”, faixa que ela criou para a trilha sonora do filme “Barbie” estava em sétimo lugar nas mais tocadas do Reino Unido, além de se tornar a primeira entrada da artista no Hot 100 da Billboard, principal parada dos EUA, em nove anos. “Isso deixou claro: ela pode ser uma grande estrela pop, se assim o desejar”, conclui.
Poucos meses depois, o texto ganharia tons quase proféticos: não só Charli XCX se tornaria uma das artistas mais disputadas do pop, como também se tornaria uma referência na cultura mundial. O mais interessante é observar que isso aconteceu não com Crash, trabalho pensado para furar bolhas, mas justamente com Brat, que encapsula as experimentações e estranhezas que caracterizam a maior parte do trabalho da cantora e produtora.
O álbum começou a ganhar tração quando a artista lançou a capa, totalmente em verde-limão e com o nome do álbum em uma fonte tosca, quase anacrônica. Com ela, Charli disse querer uma imagem quase ofensiva em sua simplicidade. Funcionou: rapidamente a estética virou meme no X/Twitter, mas não ficou restrito à rede social. Lançado do dia 7 de junho, o álbum se tornou a trilha sonora do verão do Hemisfério Norte – e, não por acaso, Charli pontuou que aquele era um “verão Brat”. E o que seria isso? Para além de tudo, uma atitude: irreverente, festeira, original, afrontosa. Com tesão e desafio à ordem, ou seja, tudo que a crescente onda conservadora prega.
Brat reflete o tumulto que é a vida jovem em 2024. Nele, Charli pode ir da confiança absoluta (“Eu sou sua referência favorita”), celebrando a farra e o hedonismo, como nas faixas “360”, “Club Classics” e “Mean Girls”, a reflexões profundas marcadas por insegurança, traumas e sentimentos confusos, como ciúmes e egoísmo, a exemplo de canções como “Sympathy is a Knife”, “Girl, so confusing” e “I think about it all the time”.
Existe uma urgência nas produções, nas letras e em tudo que envolve o Brat. Aos 32 anos, Charli, que, ao compor o álbum, por mais que desejasse o sucesso talvez não entendesse o peso que ele carrega, já refletia sobre as contradições de querer algo e ter medo da sua chegada – seja uma carreira, um filho, um casamento.
Essa honestidade talvez seja uma das principais chaves para entender o sucesso do álbum. Em um mundo em frangalhos, a utopia da festa continua como um pilar de esperança e resistência, mas assumir, também, a sensação de cansaço, fracasso e desesperança, pode ser libertador. E Charli XCX expõe no Brat toda a sua fragilidade, do êxtase à ressaca, com composições diretas e honestas embaladas em produções que abraçam as experimentações do hyperpop, capazes de ainda ferir sensibilidades que não desejam ir além do estabelecido.
Outro aspecto interessante foi a forma como a artista mostrou que seu desejo por experimentar é constante, incluindo o lançamento de um álbum de remixes, intitulado Brat and It’s Completely Different but Also Still Brat (“Brat e é Completamente Diferente mas ainda continua Brat”, em português), com novas versões das faixas e participações de Ariana Grande, Lorde, Kesha, Tinashe, Troye Sivan, Julian Casablancas, entre outros.
O sucesso de Charli é também uma celebração dos “outsiders”. Sua presença nos espaços consagrados pauta discussões sobre gosto, respeitabilidade, moral e costumes. Cantar sobre drogas, sexo, depressão, entre outros, e estar dominando as paradas não é comum. E lá está ela. Brat também alcançou a pauta para além da música: com o anúncio da candidatura de Kamala Harris, Charli tuitou que “Kamala É Brat”. A equipe da democrata mudou seu ícone de perfil, assumindo a estética do álbum e a cantora britânica virou assunto no noticiário político.
Os singles de Brat acumulam milhões de streams, ganharam lugares de destaque nas paradas e também conquistaram as redes sociais, com virais no TikTok, a exemplo da música “Apple”, cuja dança virou uma febre. O reconhecimento também veio de espaços institucionais que antes menosprezavam a cantora: Brat foi indicado a sete categorias do Grammy, incluindo Álbum do Ano, número maior do que o alcançado por Taylor Swift, maior vendedora de discos em 2024.
Quando o dicionário Collins anunciou que Brat era a palavra do ano, foi só a consolidação de algo que já era latente: mais do que um álbum, Brat é um fenômeno cultural que pautou os debates e alcançou espaços para além do campo da música pop. Por isso, independente de qualquer premiação ou de quem vendeu mais ou menos, o trabalho de Charli XCX já firmou seu lugar no panteão do pop, o que, convenhamos, vale mais do que qualquer estatueta ou certificado.
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