Transe
Anne Pinheiro Guimarães e Carolina Jabor
BRA, 2023. Doc/Drama, 1h15. Distribuição: Pagu Pictures
Com Luísa Arraes, Johnny Massaro e Ravel Andrade
Elaborar o que está próximo de nós é uma tarefa bastante difícil. Talvez seja até mais do que o que se encontra longe. O que está distante nem sempre nos convoca a algum tipo de relação. Por vezes, anulamos o que parece estar distante de nós. Às vezes, tornamos invisível o que nos gera algum tipo de incômodo, como uma tentativa de seguir em frente. Algumas vezes, bloqueamos quem não nos interessa (mais). A distância, todavia, também pode nos ajudar a delimitar melhor as fronteiras, os limites, as potências e as fragilidades de algo. Por incrível que pareça, a distância pode até ser capaz de aproximar. E ela se dá pelo tempo, quando ele passa – e isso ele sempre faz, queiramos ou não. E se dá também pelo espaço que separa um ponto de outro. A distância é capaz, ainda, de tornar evidente como lidamos com alguma situação, seja ela boa ou ruim.
Dito isso, vamos tentar elaborar um texto, sem tanta distância, logo após a minha saída da sala de cinema há alguns minutos. Foi a segunda vez, nesta semana, que assisti Transe, filme de Anne Pinheiro Guimarães e Carolina Jabor. O longa é protagonizado pelo trio Luísa Arraes, Johnny Massaro e Ravel Andrade. Cada um desses atores interpreta personagens que recebem seus respectivos nomes: Luísa é Luísa, Jonnhy é Jonnhy e Ravel é Ravel. Essa escolha aponta um indicativo do processo de produção da obra, no qual os três artistas não tinham um roteiro totalmente fixo e evidencia o limiar entre documentário e ficção que se trança ao longo da trama.
Nesse trançado, aparecem tanto a história da relação não-monogâmica estabelecida entre os três protagonistas, quanto acontecimentos da história recente da política brasileira. Costuram também a narrativa imagens e discursos que fizeram parte dos nossos últimos anos. Momentos que experimentamos grande esperança coletiva se intercalam a outros nem tão saborosos assim, que não recordávamos tão bem ou que até mesmo gostaríamos de dissipar das nossas memórias. A história se desenrola em paralelo aos dois turnos das eleições de 2018, que elegeram Jair Bolsonaro com pouco mais de 55% dos votos válidos, em 28 de outubro daquele bendito ano.
É no mínimo interessante voltar para as manifestações daquele período. Reencenar imagens dos gritos e das pessoas ocupando as ruas em reivindicações de pautas – que continuam urgentes. Esse movimento que o filme suscita faz a gente tentar relembrar onde estávamos em cada um daqueles momentos históricos. A defesa da democracia brasileira ou a luta pela vida das mulheres e de outros grupos sociais vulnerabilizados se intercalam a trechos de falas que a grande mídia insistiu em chamar de “polêmicas”, quando Jair Bolsonaro violentava boa parte dos brasileiros. É como se, apesar de qualquer cenário coletivo alarmante, nas minúcias, nos detalhes, o filme nos convocasse a lembrar que ainda somos e vivemos coisas individualmente. Somos também nossos amores, nossas paixões, nosso sexo, nosso café da manhã, nossos boletos, nossos domingos, nossas dores de coluna, os livros que lemos e os que queríamos ler. E tudo isso se relaciona à História.
Talvez sejam essas coisas simples que os momentos de interação entre os três protagonistas queiram nos dizer e nos fazer lembrar quem fomos nós, quando, naquele momento extremamente difícil, estávamos com os nossos. De alguma forma, o trio de atores interpretar personagens que se aproximam deles mesmos no território da ficção (ou em parte dele), não acontece por acaso. Cada um deles acaba sendo uma espécie de alegoria de personagens facilmente encontrados na elite cultural carioca – e de outras capitais do país, embora a carioca tenha suas peculiaridades, sim –, ou de uma certa parcela da esquerda brasileira, formada em sua maioria por pessoas de classe média, em sua maioria brancas. É importante pontuar que a elite cultural não se restringe à elite financeira, elas podem coincidir, mas não são a mesma coisa. Aqui, falamos do pessoal que curte um apartamento com o chão de taco, no centro de alguma capital brasileira, frequenta brechós vintage, acredita que grande parte dos problemas se devem ao “retorno de Saturno”, procura a física quântica para justificar seus desejos sexuais, vai bastante a museus e outros espaços de fruição artística, quase só assiste filmes de arte e parece obcecada com a música e a cultura dos anos 1960 do Brasil e do mundo. Entre outras vivências, claro.
Um protótipo de Karl Marx, que aparece em certo momento do filme, nos lembra que existe uma ficção de que tudo era melhor e mais libertário durante o período do movimento hippie. Ao menos essa é a história que contam. Só esqueceram de contar que ali também existia muito conservadorismo e muita repressão. Mas querem que nós, aqui, “no futuro”, acreditemos que naquele tempo tudo era bom e perfeito, bem melhor que agora. Ele teve, sim, e muito, sua importância, mas é importante entender também as suas fragilidades, pois a história que fica é a que é contada. Portanto, qual história deixaremos contarem ou o que nós mesmos contaremos sobre o atual momento histórico? Essa é uma pergunta importante a se fazer.
Era setembro de 2018, milhares de pessoas, principalmente mulheres, se reuniram em várias cidades do país. Estávamos a caminho do primeiro turno das eleições presidenciais e o candidato da extrema direita, que havia terminado o mês de agosto com 20% das intenções de voto, liderava as pesquisas com 28% – crescendo oito pontos percentuais em apenas um mês. Era meio inacreditável e meio assustador, mas também era mais confortável se esforçar em acreditar que aquilo não passaria de um pesadelo. E, no entanto, cada vez mais ficava evidente que, no horizonte do Brasil, a realidade de uma tempestade furiosa se aproximava. Sim, a extrema direita é um fenômeno para além do nosso país, mas gosto de pontuar que a brasileira tem suas peculiaridades e funciona com um tempero colonial um pouco diferente. Em meados de 2018, entre uma faísca de esperança e um medo que nos habitava em algum lugar difícil de mapear, a história de Transe começa.
Em certo momento, a personagem Luísa nos lembra que meses antes de ser eleito para a presidência, alguns de nós – e, aqui, preciso me incluir como parte dessa esquerda progressista que viveu e fez parte do #EleNão – o restringia a uma figura política tosca, que frequentava programas de humor, falava barbaridades na internet e não parecia uma ameaça tão real. No meu caso especificamente, eu sempre acreditei na parcela de violência que também nos compõe como nação, mas sempre tentamos recalcar, jogando-a para debaixo do tapete. O projeto de Brasil que está aí em vigor há mais de 500 anos é forjado em muito sangue, dor e exploração. Todos sabemos, mas parece que o senso de alegria que – ao mesmo tempo – também nos forja se esforça para velar esse nosso lado difícil de digerir. Faz parte de qualquer processo de cura o reconhecimento da nossa fragilidade, somos complexos. Então, de certa forma, alguns de nós nunca duvidamos realmente que seria possível de ele chegar aonde chegou e fazer tudo o que fez. Mas confesso que preferia estar errada nas minhas percepções. Só que não foi isso que rolou, né?.
Em contraposição às nossas crenças, ingenuidades, medos e dúvidas, o que o filme Transe propõe é uma fricção. Ele coloca todas essas sensações que nos habitava pré-2018 em contraposição imediata a falas e atitudes de Bolsonaro que ilustraram e feriram os nossos dias na última década.
Não é que ele não existisse. Ele sempre esteve ali – ou aqui, para aproximar. Nós, eleitores de políticos do centro-esquerda, no entanto não queríamos vê-lo ou estávamos ocupados demais para dar atenção àqueles absurdos que o cara dizia. E isso não é para gerar um sentimento de culpa que nos paralisa, já que a inércia não nos leva a lugar algum. Esse foi simplesmente o modo que nós conseguimos lidar com tudo o que enfrentamos naquele momento. Uns sentindo mais e outros menos, evidentemente. Mas a partir daqui o que faremos em 2026?
A caracterização de Jair Bolsonaro como uma figura ridicularizada, tratada com um certo desdém por quem tem acesso a ambientes culturais e é praticante de leituras e vivências progressistas e/ou do campo acadêmico, parece ter servido para afastar dos protagonistas do filme a percepção de quem ele realmente era. E isso, podemos dizer, atingiu também parte das pessoas que estavam na sala do cinema assistindo ao longa no Cinema da Fundação, como eu, de que Bolsonaro era – e é – uma realidade e um problema também nosso. Talvez agora nós já compreendamos melhor.
“As coisas são reais apenas quando temos contato com elas”. Essa frase, que ouvimos Johnny dizer num momento de paquera com Luísa, no começo do filme, parece inofensiva ou uma conversa entre jovens místicos para parecerem alguém interessante. De certa forma é até um pouco disso mesmo, mas ela provoca uma reflexão que também precisa ser feita. As coisas não se restringem ao que entendemos como mundo. As coisas acontecem também para além do que os nossos corpos conseguem ver. Nem tudo se finda na linha do nosso horizonte. Há muitos Brasis habitando esse território definido geopoliticamente como Brasil. Não sentimos as coisas como todas as outras pessoas as sentem. Podemos até compartilhar alguns pontos em comum, mas existem fatores que nos fazem perceber de formas diferente as dores e as delícias deste mundo. Entender isso na contemporaneidade parece ser um passo importante que o filme nos coloca.
O mesmo podemos afirmar quando Luísa diz “estamos distantes do Brasil”. Nesse momento do filme, algumas pessoas na sala do cinema até riram, todavia é o exato instante em que a personagem percebe que a forma de viver o país não é apenas a que ela conhece. Em 2018 diríamos, com certeza, que os eleitores de Bolsonaro, inclusive os das periferias das metrópoles e de cidades do interior, seriam pessoas alienadas. Hoje, está claro a necessidade de vencermos o desafio de entender o que os fez e faz votar nele, sem cair na arrogância de achar que nós sabemos de tudo, somos os detentores da sabedoria, de que vamos salvá-los e eles têm que nos escutar. A nossa certeza nos distancia, mesmo quando o que precisamos é aproximar.
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