Torniquete Foto Divulgacao Amanda Lavorato
Foto: Divulgação/Amanda Lavorato.

“Torniquete” esbarra em narrativa titubeante sobre feridas familiares

Primeiro longa de Ana Catarina Lugarini fez sua estreia mundial no Olhar de Cinema

“Torniquete” esbarra em narrativa titubeante sobre feridas familiares
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Cobertura Olhar de Cinema 2025 – Curitiba (PR)

Torniquete
Ana Catarina Lugarini
BRA, 2025. 1h15. Drama
Com Marieta Severo, Sali Cimi

Alegoria. Por definição: expressão figurada, não real, de um pensamento ou de um sentimento, através da qual um objeto pode significar outro. Metáfora. Nas expressões artísticas, instrumento narrativo que, se eficientemente aplicado, eleva a capacidade de abstração e interpretação proposta pela obra. No cinema, a sutileza, acompanhada de certa elegância autoral, parece-me a maior aliada para o bom uso desta ferramenta da linguagem. O lado oposto, ou seja, seu emprego indiscriminado, tende a formar um abismo perigoso cuja queda é incontornável. Lamentavelmente, Torniquete, da estreante Ana Catarina Lugarini, despenca em tal precipício. 

A trama acompanha três gerações de mulheres da mesma família vivendo pela primeira vez sob o mesmo teto. Numa hesitante tonalidade entre suspense e melodrama, a história busca esmiuçar traumas, conflitos emocionais, encontros e desencontros que aproximam e afastam as personagens Lucinda (Marieta Severo), Amanda (Sali Cimi) e Sônia (Renata Grazzini). A sequência inicial do assalto à casa onde vivem já demonstra a dificuldade da realizadora em esculpir a identidade narrativa da obra. A cena, mergulhada em sombras, opta por esconder os infratores, criando a sensação de que aquela ameaça desconhecida retornará, mais tarde, como algum tipo de revelação do roteiro – ledo engano. Nas passagens subsequentes, a câmera de Lugarini titubeia entre o desenvolvimento dramático das personagens e este ar de violência a explodir no lar da família. 

A ferida no rosto de Amanda, causada durante o assalto, é tratada como elo narrativo para o desenrolar sentimental da história. Inicia-se, então, a overdose de alegorias óbvias que tanto prejudicam o filme. A jovem se nega a “deixar a ferida cicatrizar”, mexe nos pontos, abre-a novamente e verbaliza que não permitirá a lesão fechar, o que já era evidente. Sem ligadura, a montagem sobrepõe cenas aparentemente fragmentadas, pois fluidez é uma qualidade bem distante de Torniquete. Numa tentativa atabalhoada de traduzir perigo, a direção de arte abusa no uso do vermelho no quarto de Amanda, além de o figurino da adolescente incluir objetos (anel, tênis) com a mesma coloração. 

No intuito de criar seu coming-of-age feminino, a diretora introduz a subtrama do romance colegial de forma absolutamente frágil. Mais uma vez a alegoria do vermelho-sangue está presente, durante o jogo de queimada, na bola manchada. Até mesmo os caminhos de descoberta da sexualidade são retratados, aqui, de modo tão superficial quanto pragmático. Na outra ponta do enredo, a enorme atriz Marieta Severo pouco pode fazer num papel desprovido de camadas e complexidade. Incrível perceber, entretanto, como apenas com o olhar a intérprete de Lucinda consegue extrair emoção mesmo sob a porosidade de um roteiro fatigante. Perto da experiência de Severo, a pouca segurança dramática de Sali Cimi salta aos olhos, o que naturalmente prejudica e causa afastamento do espectador à história. 

No debate após a exibição do filme no 14º Olhar de Cinema, mencionou-se a proximidade temática do filme com o fantástico Malu, de Pedro Freire (que compõe o júri do festival e estava presente à sessão). Com exceção do fato de o filme retratar filha, mãe e avó de uma mesma família, a distância entre as duas produções é astronômica. A comparação é inviável; faltam ao longa-metragem de Ana Catarina Lugarini a mínima capilaridade dramática, identidade autoral e performances que possibilitassem tal avizinhamento à obra de Freire, co-vencedora de Melhor Filme no Festival do Rio 2024, ao lado de Baby, de Marcelo Caetano

Com o terceiro ato que insiste na alegorização de acontecimentos esvaziados de sentido, Torniquete se revela irrelevante enquanto melodrama familiar e tampouco funciona como estrato particular que traduz experiências coletivas, sociais. 

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