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Foto: Iana Domingos/Divulgação.

“Essa Coisa Viva”, de Maria Esther Maciel, desata os clichês da maternidade

A partir de escrita cortante, mas emotiva, livro traz memórias e reflexões da relação tóxica entre mãe e filha

Essa Coisa Viva
Maria Esther Maciel
Todavia, 130 páginas, 2024. R$ 59,90


A literatura brasileira contemporânea tem se dedicado a explorar diferentes clichês temáticos e narrativos que fazem dessa geração uma das mais prolíficas e interessantes em muito tempo. Maria Esther Maciel é parte dessa leva de autores e traz em Essa Coisa Viva um olhar desconcertante que desafia os lugares-comuns ligados à maternidade.

O romance nos apresenta a Ana Luiza, uma botânica bem-sucedida que reconta a relação com a mãe, Matilde, após a morte da progenitora. O texto da obra é todo contado em formato de carta, o que traz um tom de revisionismo que nos permite compreender a complexidade daquela relação como se estivéssemos bisbilhotando uma sessão de terapia.

Nessa carta à mãe, Ana nos conta detalhes que darão forma àquela mulher para além da sua figura materna, uma mulher marcada pela infelicidade e cujo rancor em relação à própria vida agia como um campo de energia negativa que afetava todos ao redor. Sua relação com a filha era marcada por cobranças, reprovações, comentários maldosos, desestímulos, inveja, quebra da autoestima e violências físicas.

essa coisa viva

A partir dessa longa carta, Maria Esther constrói a figura da mãe de Ana Luiza com todo o cuidado para não transformá-la numa algoz superficial, de explicação simplista para tantas ruindades. Nem tampouco vai para outro extremo de tentar encontrar saídas “psicanalíticas” para aquele comportamento. Matilde era uma mulher de seu tempo, com toda a complexidade que isso envolve, se pensarmos em uma sociedade patriarcal como o Brasil, mas projetava em sua filha tudo o de ruim que a vida lhe oferecia. Ela também tinha problemas mentais, o que a fez ser internada para tratamento em diferentes momentos da vida.

Matilde sofreu com as traições do marido, que acabou se casando com outra mulher. Também não conseguiu lidar bem com a decadência financeira, que a tornou dependente da filha até o fim da vida. Ana Luiza, por sua vez, nunca conseguiu se desvencilhar totalmente da mãe e até nutria um sentimento de culpa por abandoná-la em busca de independência emocional e uma carreira de sucesso.

A construção que Maria Esther Bueno faz da maternidade chega a ser desconcertante, pois vai de encontro ao que a sociedade coloca como padrão à figura da mãe. Muito já foi escrito e filmado da relação problemática das mães com seus filhos e como isso repercute na vida adulta, mas a crueza como a autora retrata Matilde e Ana Luiza trazem um tipo de “maternidade tóxica” poucas vezes retratada.

Frequentemente humilhada, Ana Luiza tinha como castigos ficar horas ajoelhada no milho, além de bofetadas e chineladas. Mas eram as violências verbais as mais chocantes, como os diferentes xingamentos, manipulações e críticas à aparência, sobretudo na adolescência. Essa mesma mãe, no entanto, era capaz de momentos de um carinho ostensivo em momentos de doença da filha, o que só aumentavam os sentimentos de ambiguidade da protagonista em relação à mãe.

Essa Coisa Viva é uma leitura envolvente, ainda que a crueza do relato de Maria Esther tenha tornado o texto espinhoso, cortante. A autora constrói a narrativa a partir de objetos, como uma dentadura, bonecas, coisas de fazenda, sapatilhas e também coisas vivas, como insetos e plantas. Essa escolha tem a ver com a ideia inicial da escritora em batizar a obra de O Livro das Coisas (pensado para ter relação com outro título O Livro dos Nomes). Uma vez que a obra ganhou uma dimensão própria, o projeto foi alternado, mas o modo de contar a história permaneceu.

Essa Coisa Viva é uma excelente obra sobre como os laços familiares nos moldam, sejam pelo afeto, sejam pela violência e de como a reflexão sobre eles quase nunca é algo simples.

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