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Coco, na pisada da resistência

Grupo de Coco Negras e Negros do Leitão da Carapuça mantém viva a brincadeira do coco de roda em meio aos processos de desvalorização da cultura popular. "Falta investimento para que os jovens se interessem"

De Afogados da Ingazeira, PE.

A pacata Afogados da Ingazeira, localizada no Sertão do Pajeú e distante 380 km do Recife, guarda duas preciosidades pouco conhecidas em Pernambuco, mas muito valiosas para a cultura e patrimônio histórico do Estado: a curiosa Serra do Giz e o Grupo de Coco Negras e Negros do Leitão da Carapuça – uma e outro parecem fundir-se em uma única atmosfera de beleza e valor cultural. 

A peculiar formação rochosa, que fica na comunidade Leitão da Carapuça, distante cerca de 20km da sede do município, parece se desmanchar como um giz. Ela abriga uma vegetação exuberante, fauna diversa e um paredão natural com pinturas rupestres. Apesar de fazer parte de uma unidade de conservação  e refúgio da vida silvestre a partir de 2019, as representações artísticas pré-históricas apresentam sinais de deterioração por atos de vandalismo como pichações.

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Já as galerias esculpidas pelo tempo, com degradê de cores entre laranja, vermelho e rosa, são outro espetáculo para os olhos. E é lá, aos pés da cadeia rochosa na qual se encontra a Serra do Giz, onde está a comunidade que protege a serra – seus moradores são os responsáveis pelo controle da entrada de visitantes – e que abriga um dos grupos de coco de roda mais originais de Pernambuco. 

A cada terceiro domingo do mês, os moradores do local se reúnem na casa do agricultor Sebastião José da Silva, 55 anos, para ensaiar e fortalecer a brincadeira do coco de roda. Batizados oficialmente de “Negras e Negros do Leitão da Carapuça”, o grupo já chegou a gravar um disco, com direito a visita de Gilberto Gil no lançamento do álbum, em 2003, mas hoje luta para ter mais espaço na vida cultural da região, e até de Pernambuco, e tenta atrair jovens para tocarem o folguedo.

Segundo Sebastião, responsável legal pelo grupo, a falta de investimento é o principal problema: “os jovens não se interessam em participar porque falta microfone e equipamentos. Eles queriam que fosse uma profissão, mas é tudo por nossa conta. Até a participação dos atuais integrantes enfraquece quando não há investimento em cultura”, afirma. Oficialmente o grupo tem 16 pessoas – o número serve de base para cachês em festivais e apresentações festivas bancadas, em sua maioria, por governos municipais da região.

Coco de Afogados da Ingazeira.
A estudante Fernanda Silva, 15 anos, é uma das poucas jovens da comunidade que se mostram interessados no coco (Fotos: Leo B. Lemos/O Grito!).

O Leitão da Carapuça é reconhecido como uma Comunidade Quilombola pelo Governo Federal e era inabitado no começo do século 20, talvez pelo seu difícil acesso. Os primeiros a ocupar a terra foram justamente os antepassados de Sebastião José e dos Mestres do Coco Inácio Pedro da Silva, 77 anos, e Manoel Miguel da Silva, 66 anos. Eles migraram do município vizinho, Custódia, para trabalhar no Leitão com agricultura.

A região que comporta o Leitão da Carapuça fica na divisa dos municípios de Afogados da Ingazeira, Carnaíba e Custódia. As famílias que ali residem mesclam originários desses três municípios. Existem outras comunidades quilombolas espalhadas pela região e grupos musicais como tocadores de pífano, reisados, mas todos enfraquecidos e desmobilizados.

A ocupação da área foi lenta. “A brincadeira em si só passou a existir por aqui a partir da década de 1920, ainda com meu avô e seus parentes que vinham para cá trabalhar na terra. Apenas com o tempo fomos ficando permanentemente”, relembra Manoel Miguel. “Eu vinha menino na garupa de uma burra. Vínhamos para plantar, chegávamos na segunda e voltávamos no sábado, mas aqui não tinha gente porque nem carro de boi andava aqui”, completa Inácio Pedro.

“Sou do barreiro/ marmeleiro pisa o barro/ Sou do barreiro / massapê barro torar”

Canção da época de construção das casas de taipa

Na região da caatinga, brincava-se o coco principalmente durante a construção das casas de taipa. As loas cantadas eram ritmadas pelo pisar do barro. “As pessoas diziam ‘vamos fazer a tapação da casa e fazer um samba para dançar o coco e fazer o aterro’, que é nivelar o piso. Fora essas épocas a gente só brincava nas noites de fogueira (São João) e farinhadas”, conta Manoel. “Comecei com uns 12 anos, observando os mais velhos, mas eles não ensinavam, porque só eles queriam a fama. Eu que fui aprendendo de olho, mas hoje faço questão de ensinar”, completa.

Mais velho que Manoel, Inácio detalha que só por volta dos 18 anos começou oficialmente no Coco: “Eu e meus primos fomos brincando, foi dando certo, e assim que meus parentes iam passando eu ia assumindo”, conta.

No coco de roda duas pessoas cantam, alguns membros manuseiam instrumentos e o povo complementa a melodia com a pisada firme no chão ou na batida da palma da mão. Pandeiro, ganzá e triângulo são os instrumentos básicos. A alegria, outro elemento fundamental, é contagiante e instantânea ao primeiro som das rimas.

Ao contrário do que se pode imaginar, o ritmo surgiu primeiro nos engenhos de cana de açúcar dos sertões para depois chegar à zona litorânea. Segundo dados da Fundação Joaquim Nabuco, o ritmo nasceu entre Alagoas, Paraíba e Pernambuco, sem exata localização geográfica, mas é unanimidade entre os estudiosos que foi do canto dos tiradores de coco que germinou o ritmo. Depois veio a dança.

“Essa questão de origem geográfica é sempre complicada e no caso do Samba de Coco é tão difícil de ser identificada com precisão quanto à forma como a brincadeira começou a acontecer”, reforça Arnaldo Siqueira, professor do Curso de Dança da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “Explicar essa manifestação cultural, onde há misturas de elementos como espiritualidade, canção, poesia e dança vai muito além de como se apresenta o folguedo”.

“A presença do coco de roda nos municípios do interior corrobora com o pensamento da origem da dança em municípios afastados do litoral”, reflete César Pereira, analista de Ciência e Tecnologia da Fundação Joaquim Nabuco e estudioso do ritmo. “Provavelmente foi na divisa de Alagoas e Pernambuco, mais precisamente na região que se considerava terras da Serra da Barriga, uma extensão de terra maior que Portugal”, arrisca.

coco.
Leitão da Carapuça: Mestre Manoel, no pandeiro, e Mestre Inácio, com seu ganzá, comandam a festa. (Foto: Leo B. Lemos/O Grito!)

César ainda destaca que o ritmo apresenta diferentes nomeações, mas uma única raiz: “Coco de usina, coco de praia, coco de ganzá, coco de roda, zambê, coco de embolada, coco de umbigada, coco do sertão, pagode. O que têm em comum é a palavra ‘coco’, cada um deles apresenta elementos díspares e com sotaque próprio, com a finalidade de agradar a população local”, detalha. Tanto César Pereira, da Fundação Joaquim Nabuco, como Arnaldo Siqueira, da UFPE, apontam as influências da cultura africana, dos quilombos e do bailado dos indígenas como elementos de formação do coco de roda.

Outra característica é a forte relação do ritmo com o trabalho, ainda segundo a opinião de César. O mestre Manoel lembra que seus pais e avós iam catar o coco na mata e trabalhavam o fruto cantando, porque na visão dele está na natureza do sertanejo desenvolver os afazeres cantando. “Na minha infância havia muito coco catolé. Meus antepassados iam procurar o coco no cacho verde, alguns secos. A gente quebrava no pilão, extraia óleo, fazia artesanato, até da palha, fazia vassoura e abanador”, relembra.

Coco, de geração em geração

Ganzá, pandeiro e triangulo nas mãos, o grupo Negras e Negros do Leitão da Carapuça está pronto para a brincadeira. Enquanto na geração de Mestre Inácio o coco foi passado de maneira mais orgânica, na geração de Mestre Manoel o conhecimento era guardado: um cantador não ensinava aos mais novos. Mas, em comum, ambos desenvolveram o conhecimento no folguedo a partir da observação.

“A geração de meus avós e meu pai não ensinavam à gente, mas eu fui aprendendo de cabeça e me juntava com meus primos pra improvisar nas farinhadas”, relembra Manoel. Conforme a brincadeira começou a ser catalogada pelo Poder Público, passou-se a pedir dos brincantes uma organização mínima e o grupo foi se transformando e conseguiu chegar aos dias atuais com algum conhecimento do público, respeito e certa fama. E também atrai a atenção dos mais jovens, que dançam e se divertem quando há os encontros. Poucos, porém, se engajam pelo estudo e preservação da brincadeira.

A exceção é a jovem Fernanda Silva, de apenas 15 anos, afilhada do mestre Manoel Miguel. Fernanda inaugura também uma novidade no Coco: mulheres puxando a brincadeira. Mestre Manoel explica que muito poucas mulheres puxavam as músicas. “Às vezes na farinhada, mas nunca improvisando, sempre cantando as canções mais tradicionais, como cantigas populares”, diz. 

O coco, aliás, possui ainda outra peculiaridade além de poucas mulheres cantando: há o mestre que improvisa, caso de Manoel Miguel, e há o mestre que repete as canções já criadas ou leva algum tempo para construir a rima, caso do mestre Inácio Pedro. Já a futura mestra Fernanda Silva tenta fazer as próprias rimas. “Ainda estou aprendendo. Mas acima de tudo é um privilégio fazer parte. Às vezes puxo um desafio, mas meu foco é mais observar e aprender”, detalha a estudante.

A visita de Gil

Em 2003, beneficiados pelo programa Arca das Letras do Governo Federal e catalogados a partir de pesquisas das organizações sociais Projeto Dom Helder Câmara e Diaconia, o grupo de coco do Leitão da Carapuça viveu o momento mais marcante da carreira ao receber, na comunidade, o então Ministro da Cultura Gilberto Gil durante o lançamento do primeiro CD do grupo. À época, mestre Inácio tinha outro parceiro, chamado Agnaldo.

“Quando houve o projeto eu apenas brincava junto. Foi uma festa gigantesca. Depois da visita de Gil o grupo fez algumas viagens e numa delas um dos parceiros, Zé João, não veio e eu entrei no lugar dele”, relembra Manoel. O lançamento com a presença de Gil certificou o grupo e abriu muitas  oportunidades.

Ao longo dos anos 2000 eles fizeram diversos intercâmbios e shows, mas com o tempo o número de apresentações foi diminuindo até zerar durante a pandemia, que provocou ainda o distanciamento do grupo. O desafio atualmente no pós-pandemia é se reorganizar, reanimar os participantes e conseguir novos investimentos para vestimentas e equipamentos, para tentar fazer mais shows.

“Meu sonho é adquirir um ônibus para transporte do grupo”, destaca Manoel. “Hoje em dia está muito bom para a cultura, as pessoas elogiam a gente, antes não tinha elogio, mas o que precisa é de apoio para gente se desenvolver”, reflete Inácio. A esperança em editais públicos tipo Funcultura ou Patrimônio Vivo é o que move o grupo, e está nos planos da Secretaria Municipal de Cultura ajudar o coco Negras e Negros do Leitão da Carapuça a acessar esses recursos: “Nossa assessoria técnica vem dando suporte ao grupo”, explica Augusto Martins, secretário de cultura de Afogados da Ingazeira.

Piseiro, celular e juventude

A partir de 2023 o Mestre Manoel decidiu manter ao menos um ensaio mensal para engajar os brincantes, receber turistas que visitam a Serra do Giz e tentar articulação com quem possa ajudar o grupo a se desenvolver. Somado aos esforços da jovem Fernanda Silva, eles pretendem catalogar músicas antigas e ir incrementando as apresentações.

Enquanto Inácio enxerga nos estilos musicais contemporâneos um fator que distancia o jovem do Coco, Manoel é mais otimista. Pesquisador nato e muito curioso, ele tenta entender o que pode atrair a juventude para o coco e faz suas apostas. O clássico de Luiz Gonzaga “Cheiro de Carolina”, que viralizou nas redes sociais nos últimos meses, num remix estilo piseiro, entrou para o repertório. 

Manoel explica que decidiu colocá-la nos ensaios após verificar o interesse da juventude pela canção, seja na internet ou nas caixas de som que não param de tocar o piseiro. “Acho que é uma maneira de trazer a molecada, porque eles até param de ouvir o piseiro ou o pagode e vem brincar com a gente. É assim: do nada eles chegam e falam ‘vem Manoel, é hora do coco’.Eles respeitam nossa hora de se apresentar, só falta eles virem tocar e levar o coco pra frente quando nós mais velhos não estivermos mais aqui”, afirma.

Por outro lado, o grupo já perdeu muitos integrantes por conta das igrejas evangélicas. Mas nada tão abrupto como ocorre na Zona da Mata, onde igrejas neopentecostais e Maracatus disputam pessoas.

Outra curiosidade presente nas apresentações do grupo é a inclusão no repertório de fatos do cotidiano. Os ataques de tubarão em Jaboatão dos Guararapes, por exemplo, levaram os mestres a adaptarem uma das suas canções – “Lá no mar eu vi o mar gemer” virou “Em Piedade eu vi o mar gemer / Eu vi o povo correndo pro tubarão não comer”. “Não é de hoje que as coisas do dia a dia que viram música no coco de roda, isso é desde sempre”, esclarece Manoel.

Apesar de ser um folguedo antigo, os mestres do coco não viram as costas para a modernidade. Eles acreditam haver mais vantagem que desvantagem no uso da tecnologia. Para eles o celular tem um poder especial por registrar sua arte e fazê-la chegar mais longe. “Nesse ponto a modernidade veio para o bem”, filosofa Inácio, que não sabe ler, mas apresenta uma memória invejável. “E através da modernidade a gente também pode receber mais gente na comunidade, quem sabe mais recursos”, completa mestre Manoel.

Apesar da relevância cultural, o Negros e Negras não conta com grandes fontes para  sua manutenção. O apoio da política local se dá de maneira básica – vestimentas e cachês em festas religiosas. Tudo muito tímido perto do potencial do grupo. Portanto, não é difícil perceber que habilidades para viver da arte não lhes faltam. Além disso, a localização privilegiada de sua comunidade: os arredores da Serra do Giz apresentam um potencial extraordinário para turismo ecológico e turismo de aventura, que se bem explorado poderia complementar uma rede de serviços, aliando turismo e cultura – a comunidade poderia receber esses turistas, alimentá-los e apresentar-se para eles.

Todavia, por enquanto, só resta aos integrantes do coco do Leitão da Carapuça se alimentarem da esperança de um dia ganhar alguma renda a partir de sua arte e, com um largo sorriso no rosto, levar a vida na simplicidade da embolada. Todo terceiro domingo do mês.

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