O Último Sonho
Pedro Almodóvar
Companhia das Letras, 192 páginas, R$ 74,90
Tradução de Miguel Del Castillo
Quem acompanha a carreira do cineasta espanhol Pedro Almodóvar e conhece boa parte da sua filmografia já está familiarizado com seu universo de tramas narradas em um estilo e mise-en-scène cujas histórias não deixam dúvidas do quanto da sua vida pessoal nelas estão presentes. Com mais de 20 longas-metragens de ficção, com enredos que vão do humor irreverente ao melodrama, a originalidade dos argumentos e roteiros dos seus filmes é um dos elementos chaves para o êxito de um diretor que nos impressiona a cada novo trabalho, mesmo quando se trata de adaptações literárias, a exemplo de O Quarto ao Lado, atualmente em cartaz nos cinemas.
O gosto pela literatura e a habilidade para a escrita são, portanto, aspectos fundamentais na vida e formação de Almodóvar. Assim, para quem deseja conhecer um pouco mais do processo criativo do cineasta e se inteirar das suas fontes de inspiração, uma boa oportunidade para isso é a leitura de O Último Sonho, uma reunião de doze textos escritos por Almodóvar desde o final da década de 1960 e início da década de 1970 – quando ele ainda era um simples funcionário da companhia telefônica espanhola – até os dias atuais.
É o próprio Almodóvar quem afirma ser esta compilação de alguns de seus escritos algo próximo de uma autobiografia, mesmo sendo “fragmentada, incompleta e um pouco enigmática”. O período vasto no qual esse material foi produzido e a ampla gama de temas e gêneros presentes nos contos em que se mesclam auto ficção, comédia, paródia, pastiche e gótico, como acrescenta o cineasta na apresentação do livro, permitem ao leitor recolher “informações sobre ele e como essas coisas acabam se misturando com minha vida”.
Essa estreita ligação entre os filmes, os textos e a vida do artista, todavia, faz com que os seguidores de seu trabalho tenham, certamente, uma interação e compreensão mais intensa do que isto significa do que alguém que esteja entrando em contato pela primeira vez com sua produção. Não que os escritos não sejam interessantes por si sós, afinal ele começou a escrever bem antes de realizar filmes e é também autor da novela Fogo nas Entranhas e de Patty Diphusa com crônicas reunidas sobre a personagem.
O cinema, contudo, acaba permeando o livro em vários momentos, como na primeira narrativa, intitulada “A Visita”, escrita no início dos anos 1970 e que se transformou no filme Má Educação, de 2004, ou nos textos mais recentes como “Natal Amargo” onde ele inclui uma cena sobre a cantora mexicana Chavela Vargas, cujas canções aparecem em diversos de seus filmes.
Entre os textos, há também os relatos apresentados quase como se fossem páginas de um diário, pois são narrações de trechos reais da vida de Almodóvar. “Romance Ruim”, por exemplo, escrito em 2023, é uma reflexão pessoal sobre o ato de escrever romances e roteiros e as diferenças entre eles. Os escritos revelam também obsessões do cineasta como a paixão por A Voz Humana, de Cocteau, que inspirou filmes como A Lei do Desejo e acabou virando o curta de 2020 interpretado por Tilda Swinton.
Outro texto a chamar a atenção é o que dá título ao livro: “O Último Sonho”, onde o cineasta discorre sobre a morte da mãe e a relevância da figura materna em sua formação. Não menos fascinantes são os contos “A Cerimônia do Espelho”, sobre um inusitado encontro entre um vampiro e um padre, e “A Redenção”, no qual um carcereiro resolve contar a relação entre Jesus e Barrabás por ele testemunhada enquanto ambos estavam no cárcere.
Os escritos de Almodóvar, como vamos rapidamente perceber, têm o mesmo espírito de pós-modernidade encontrado nos seus filmes. São ecléticos, expõem a sua disponibilidade para misturar gêneros e estilos de épocas diferentes sem preconceitos e a habilidade para costurar de forma instigante memória, desejo e sentimentos. É uma leitura que seduz pela transparência e sinceridade da exposição em que mesmo as coisas tenebrosas, como a morte e a solidão, ao final, são vistas como oportunidades de aprendizado e amadurecimento.
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