Uma das vozes mais fortes da Amazônia faz aniversário, mas quem ganha presente é o público. Dona Onete comemorou seus 85 anos de idade nessa terça-feira (18) e presenteou os fãs com um novo disco, intitulado Bagaceira, o quarto álbum da cantora.
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Bagaceira, assim como os outros trabalhos da artista, explora ritmos típicos do Norte e pega como referência as festas do interior do estado. “A festa do interior do Pará é uma bagaceira. Você chega, dança, come, bebe, pensa que acabou a festa, volta pro salão, dança, o sol nasce e a festa ainda não terminou. E, quando vai terminar, os ribeirinhos pegam o barco e continuam a festa no Ver-o-Peso”, diz dona Onete.
“É algo mais profundo do que apenas a festa pela festa. Nos tempos antigos dos engenhos de cana-de-açúcar em Igarapé-Miri (PA), a ‘bagaceira’ era uma expressão usada pelos caboclos. Era sobre aquelas festas depois do baile oficial, longe dos olhares críticos da sociedade, sabem? O povo dançava descalço, com a sua curtição, à sua maneira. Era uma festa sem os refinamentos da alta sociedade”, conta.
O disco de dez faixas busca introduzir no seu repertório expressões nortistas além do carimbó – que já tem a própria Dona Onete como sua rainha. Lambada, Brega, Banguê, Toada de Boi são alguns desses ritmos trabalhados pela artista. “Trouxe isso pra mostrar pro pessoal que não é só dentro da capital Belém”, como ela disse.
Em uma conversa com a Revista O Grito!, Dona Onete fala não apenas de seu novo disco, mas também da proporção e espaço conquistado pelos artistas do Norte, sua trajetória como alguém que entrou na música já aos 70 anos e o passado antes dos palcos. Confira:
Dona Onete, a senhora é convidada para todas as reuniões para debater a preservação da Amazônia. Na percepção da senhora, será que demorou para o povo do Sudeste, do Sul começar a perceber que precisa manter a floresta em pé?
Demorou para todo o Brasil ver, o mundo todo ver, né? A gente precisa tanto das nossas florestas, há tanta riqueza, diversidade e sobrevivência. Dependemos dela para tudo. Viver em harmonia e respeito com a natureza e com quem cuida dela não deveria ser um desafio, mas é. Cada dia é uma luta.
E como surgiu a ideia de gravar um disco em homenagem à diversidade da cultura paraense e da Amazônia?
Trouxe isso pra mostrar pro pessoal que não é só dentro da capital Belém, que tem as grandes festas como de aparelhagem, como de carimbó mesmo, raiz, tem outras coisas pelo interior, aí já foi a pavulagem que foi pra dentro do pitiú, aí se misturou, pavulagem e pitiú deu no que deu! Então o brega e a lambada, o carimbó e a guitarrada, pra mim ainda é o carro forte das minhas músicas.
Agora, eu eu estive agora em Mocajuba, que eu fui buscar o Banguê, a coisa mais linda. Até o Boto dançou, viu? O Boto veio me encontrar e eu cantei para o Boto e ele dançou. Até o Boto viralizou. O Pará tem muita coisa! Vem, gente, vem pro Pará, vem ver. Vem ver o que a gente tem.
É verdade que a festa do Pará é uma “bagaceira”?
[Risos] Eu quis neste CD homenagear a festa do interior. Bagaceira é o fim de uma festa.
Depois das Festas de São Sebastião eu via que o povo se reunia e continuava as comemorações, tinha uma mistura muito grande de vários ritmos. E eu vejo que isso ainda acontece hoje em dia, no final da festa toca brega, toca lambada, toca carimbó, toca guitarrada, essa bagaceira!
E a Garça pelo meio, o Urubu também, todos se misturam. Sabe aquela festa que ninguém quer que acabe? A pessoa vai perdendo sapato, esquece bolsa, celular. É uma Bagaceira. É uma mistura de Ver-o-Peso com Feira do Açaí.
A senhora está com 85 anos e uma agenda lotadíssima, sempre está em viagem e compromissos. Enfim, eu quero saber de onde que vem esse vigor, de onde que vem essa energia. Por acaso vem do jambu? Vem do açaí, vem do tucupi, vem de onde?
Vem dos meus fãs, do carinho que recebo. Eu preciso muito desse carinho, dessa troca. A minha energia vem daí. E de um açaí também [risos].
Depois que me libertei do casamento, consegui lutar pelo que acreditava. A luta era mais importante do que o relacionamento.
Dona Onete
O seu primeiro álbum é de 2012, você já tinha por volta de 70 anos. Esse sucesso veio nessa idade por quê? Você reflete sobre isso, se o mundo demorou tanto para reconhecer o teu talento?
Eu tive um marido muito ciumento e opressor. Casei muito nova, com 19 anos, e acabava fazendo a vontade dele. Mas sempre escrevi minhas músicas, deixava nas minhas gavetas. Fui professora, dei aula de história em colégios de Igarapé-Miri, no interior do Pará, um lugar muito importante na minha vida.
Um dia, cansei e separei. Encontrei um novo amor, casei de novo, mas ele se foi. Já viúva, estava cantando numa roda de carimbó e um coletivo chamado Rádio Cipó escutou e gostaram. Me chamaram para participar da banda, inicialmente eu não quis, mas meu marido me incentivou e eu fui, daí não parei mais.
A senhora pode falar um pouco mais esse seu período como professora, inclusive, sobre a sua atuação como sindicalista, ainda na década de 1980?
Olha, foi um período muito bom da minha vida, tenho ótimas lembranças, da luta pelos nossos direitos. Depois que me libertei do casamento, consegui lutar pelo que acreditava. A luta era mais importante do que o relacionamento. Eu fui uma das responsáveis por fundar o Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública de Igarapé-Miri e atuei na luta cultivo sustentável de açaí em Igarapé-Miri que é considerada a capital do mundo do açaí.
A diferença do carimbó para o samba é que colocaram muito açaí ou tucupi no carimbó? O que acha?
[Risos] Olha, acho que a diferença é muito mais. São ritmos que são retratos de uma cultura. Acho que além dos ingredientes que você falou, tem o mormaço também (risos).
Ouça o novo disco de Dona Onete – Bagaceira
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