O penúltimo dia da 13ª edição do Animage tirou o pé do acelerador. Sem exibições no Teatro do Parque desde quinta-feira e finalizando as mostras competitivas na sexta, o sábado contou com uma programação mais enxuta comparado com o resto da semana. Ainda assim, atraiu o público livre dos ‘empecilhos’ da semana útil pela primeira vez desde o início do festival.
Na sala da Fundação Joaquim Nabuco do Derby, o dia começou com a primeira exibição da Mostra Africana – uma das únicas a ter direito a reprise, junto à Mostra Retrospectiva Marão, que viu sua segunda sessão chegar às telonas na última sexta. Durante a noite, o destaque foi dos longas-metragens.
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O primeiro entre os projetados, o francês O Pequeno Nicolau (2022), dirigido por Amandine Fredon e Benjamin Massoubre, foi quem ocupou mais poltronas. O filme mistura adaptação dos icônicos quadrinhos franceses de Jean-Jacques Sempé (1932 – 2022) e René Goscinny (1926-1977) com a biografia de seus autores – o segundo longa deste tipo no Animage, junto do alemão Johnny & Me.
Mas diferente da obra de Katrin Roche, Fredon e Massoubre optaram por uma abordagem mais lúdica ao invés da cronológica e expositiva. Aqui, não temos conhecimento de detalhes sobre os artistas que não influenciaram diretamente o processo criativo dos quadrinhos, com exceção da conclusão da narrativa – o trabalho de René Goscinny com Asterix só é citado nos minutos finais do filme, por exemplo.
Ao invés disso, a produção revela fragmentos da história da dupla – como relações com os pais, experiências escolares e viagens – ao longo dos anos em que trabalharam juntos nas graphic novels e contos do personagem-título através de conversas inspiracionais entre eles e o próprio Nicolau sempre que o pequeno encrenqueiro parisiense pede uma nova aventura ou um coadjuvante para lhe fazer companhia, afinal de contas a cinebiografia também é dele.
Intercalado com a história de seus criadores e a gênese dos gibis, o filme também toma seu tempo para adaptar algumas das famosas histórias do Pequeno Nicolau e introduzir toda sua galeria de personagens, numa belíssima modernização do traço de Sempé que ilustra todo o filme. A preocupação em trazer as aventuras ao cinema para contextualizar o espectador é também parte do que faz toda a produção funcionar – é um desafio deixar o público investido em algo sem saber exatamente do que se trata, e o que deixa esse gênero cinematográfico tão mais nichado.
O que torna esta uma das mais prazerosas cinebiografias modernas, no entanto, é que possui temáticas e mensagens além de apenas levar fatos às telonas, se entendendo mais como arte do que como possível fonte de pesquisa – para o ódio dos aficionados por precisão histórica em filmes do tipo. Em sua alma, é um conto sobre imaginação, inocência e amizade – pilares das aventuras de Nicolau, elementos que pautaram sua criação, e que conectaram seus dois autores ao longo dos mais de 20 anos de colaboração.
Velhas Lendas Tchecas
A noite na Fundaj foi encerrada pela exibição de Velhas Lendas Tchecas (1953), um clássico do cinema tcheco dirigido por Jiří Trnka – um dos pioneiros da animação no país, conhecido como “Walt Disney do oriente” pela sua grande influência e predominância em produções infanto-juvenis e infantis. No ocidente, no entanto, sua fama não foi muito além dos nichos cinéfilos voltados para animações.
Além de animador, ilustrador e cineasta, Trnka também era um artesão de marionetes, e é através delas que ele realizou a adaptação imposta pelo governo da antiga Tchecoslováquia do livro Antigas Lendas da Boêmia – que noveliza histórias da fundação da Chéquia e outros clássicos da literatura popular. Assim como os escritos de Alois Jirásek, o longa segue uma estrutura antológica, dividido em sete capítulos retratando diferentes lendas carregadas de patriotismo.
Para quem inicialmente sequer queria trabalhar no projeto, o diretor entregou um produto final à frente de seu tempo. A obra surpreende em seus detalhes artísticos, das marionetes, cenários e criaturas à fotografia, movimentos de câmera e iluminação, além da trilha sonora que acompanha a maior parte do filme, econômico com efeitos sonoros e diálogos – que não faziam muito o gosto de Trnka.
É válido ressaltar, inclusive, que o material não sofreu alterações durante a digitalização e remasterização – foi apenas restaurado para ter uma experiência semelhante às suas exibições originais na década de 1950, como informado em letreiro que toma o primeiro minuto de filme.
Apesar do tom de filme institucional e narrativa ocasionalmente cansativa, a criatividade e preciosismo artístico o tornam essencial para qualquer aspirante a animador e cineasta, até aqueles que preferem pôr seres humanos reais frente às câmeras. É através de um esperto uso de enquadramentos, ângulos, luz e movimento que Trnka dá emoção a bonecos inexpressivos, cria iconografias semi-religiosas e instiga um público alienígena na mitologia de seu país.
E o uso da palavra “mitologia” é literal. A obra não traz somente histórias reais da fundação da Chéquia e as intrigas e traições dos reis e rainhas no decorrer das gerações, mas um épico fantástico envolvendo figuras com status de campeões, seres mágicos e natureza senciente – e somada à habilidade de Trnka de santificar suas marionetes apenas com sábia composição de cena, cria incerteza, ao final dos pouco mais de 90 minutos de duração, sobre o que é verídico e o que é liberdade artística e crença popular.
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