ciranda 1
Exibição de Ciranda Cirandeira no Teatro do Parque. (Divulgação).

Animage 2023: noite de abertura traz aconchego de Lula Gonzaga e peixes bizarros de Marcelo Marão

Primeiro curta do pernambucano em 40 anos conta com colaboração de Lia de Itamaracá, que marcou presença no evento

Teatro do Parque, Recife (PE)

Para começar a falar da noite de abertura do 13º Animage na noite da última terça (3), é preciso adiantar um pouco para o final – o último momento do evento, já encerrado o bate-papo após as exibições, quando o pernambucano pioneiro do cinema de animação no estado Lula Gonzaga se dirigiu ao carioca Marcelo Marão, relembrou o dia em que se conheceram, o parabenizou pelo filme, e agradeceu pela oportunidade de dividirem o espaço.

Essa breve interação saudosista e aconchegante entre dois nomes icônicos da arte celebrada pelo festival foi resultado de sorte em ter ambas as produções finalizadas na mesma época, e do maior acerto da curadoria no dia: pôr seus convidados de honra para dar o pontapé inicial às mostras.

E não apenas pelo encontro, mas até pela coincidência das circunstâncias: Marão é o homenageado desta edição, trazendo a estreia nacional de seu primeiro longa-metragem, enquanto Lula, Patrimônio Vivo de Pernambuco, traz seu primeiro curta em 40 anos – ambos carregados de memória e família.

Com o Teatro do Parque cheio, as palavras iniciais foram do curador Julio Cavani e do diretor do Animage, Antônio Gutierrez, que adiantaram o que está por vir nesta nova edição do evento.

“O Animage estabelece nesta edição uma ligação de referências históricas da animação, expressa por exemplo na Mostra Especial da tcheca Hermínia Tyrlová, ao que há de mais atual na produção de cinema de animação no mundo, o que coloca o festival entre os mais representativos do país”, disse Gutierrez à Revista O Grito!.

Lula Gonzaga, Animage
A equipe de Ciranda Cirandeira no palco. (Foto: Guilherme Anjos/OGrito!).

Antecedendo as exibições, as equipes de cada produção apresentada na noite subiu no palco e se introduziu. Ciranda Feiticeira (2023) aproveitou um pouco mais do tempo. Enquanto o codiretor Tiago Delácio comentava aspectos técnicos e creditava os profissionais envolvidos, seu pai Lula adiantou a temática do filme, relembrando o início de sua amizade com Lia de Itamaracá.

Apesar de deixar poucas palavras no palco durante a introdução, Lia foi uma presença forte no curta, não apenas emprestando sua voz para a única fala da obra, como também fazendo uma música dedicada à produção.

Ambientada na Ilha de Itamaracá, Ciranda Feiticeira traz em oito minutos alguns dos temas mais bem explorados da ficção: crescimento, maternidade e memória geracional. Mas mesmo uma história tão universal não deixa de emocionar através de contadores tão sensíveis. 

Lula Gonzaga.
O cineasta pernambucano Lula Gonzaga, Patrimônio Vivo de Pernambuco. (Victor Jucá/Divulgação)

A obra segue um dia na vida de Janaína e sua mãe, duas mulheres que compartilham da cultura de pesca dos jangadeiros. Mesmo quem nunca pisou em Itamaracá consegue sentir o aconchego do lar. Cada quadro toma seu tempo para detalhar cada passo do ritual da família, gravando-os na mente do espectador tal qual estão sólidos na da protagonista. A criança acorda, acende suas velas e faz uma oração antes de sair para brincar enquanto sua mãe trabalha.

Em seu clímax, o filme se permite brincar mais com a própria arte, apostando no psicodélico e abstrato ao som de ciranda para representar os amores e dores trazidos pelas ondas do mar, a ansiedade da responsabilidade de carregar para frente os rituais tão familiares quanto laços de sangue. A arte de proporções mais realistas serve como âncora, o retorno à realidade.

Ciranda Feiticeira não é uma obra com a pretensão de derramar suas lágrimas. A melancolia é inevitável, mas é muito mais sobre celebrar as memórias que nos tornam humanos e preservar a cultura que nos faz vivos, garantindo um sorriso aquecido.

Os peixes bizarros de Marão

Ao introduzir seu longa, Bizarros Peixes das Fossas Abissais (2023), o diretor Marcelo Marão não gastou muita saliva. Com um debate agendado para o final da noite, o carioca comentou rapidamente sobre os profissionais que o acompanharam ao longo dos dez anos de produção, e apenas adiantou que o que estávamos prestes a ver era “simples e esquisito”.

E de fato, é simples, esquisito e até caótico, mas também uma viagem prazerosa. Os minutos iniciais chegam a ser confusos, jogando o público numa ação em tons de cinza repleta de absurdos, coreografia bem humorada digna de Jackie Chan e gesticulações exageradas que remetem ao animador russo Genndy Tartakovsky – até que a heroína quebra o silêncio: “Minha bunda é um gorila”. Tolice achar que era da boca para fora.

A abertura dá o tom dos 75 minutos da obra, que acompanha uma mulher com poderes de alterar o próprio corpo e a realidade ao seu redor, uma tartaruga com transtorno obsessivo-compulsivo e uma nuvem com incontinência urinária em busca dos fragmentos de um misterioso artefato, numa jornada que coloca o grupo no caminho de perigosos inimigos vindos do espaço e do fundo do oceano.

Animage.
Bizarros Peixes das Fossas Abissais, de Marcelo Marão. (Divulgação).

A assinatura de Marão está em tela a todo momento, do seu humor absurdo com referências obscuras que apenas ele mesmo irá entender à mistura de estilos de arte nos heróis, vilões e cenários, e até aos personagens de seus curtas e membros da produção marcando presença. O próprio caos do filme é parte da identidade, resultado de um processo criativo igualmente caricato.

“Produzi meu primeiro longa com a mesma lógica que produzo meus curtas: sem model sheet, storyboard e animatic. Montei uma equipe formada por mim, Rosária e Fernando Miller e fiz dezenas de milhares de desenhos a lápis no papel, improvisando as cenas de modo teatral e em ordem cronológica”, explicou Marão. “A narrativa e o design dos personagens evoluíam à  medida que o filme avançava, assim como uma graphic novel autoral que se altera com o passar das páginas”, disse.

E apesar de ter conquistado seu objetivo –  um produto final abstratamente biográfico e com a essência de seu progenitor – foi necessário abdicar elementos pontuais que proporcionariam uma melhor experiência ao público. Para um filme tão hiperativo, Bizarros Peixes das Fossas Abissais se torna redundante em momentos que entrega diálogos expositivos, e passa tempo demais em cenas apenas para o que aparenta ser preciosismo artístico de quem está se aventurando num novo formato e tem muita história para contar.

Marcelo Marão, Animage.
A estreia em longa de Marão, em exibição no Teatro do Parque. (Victor Jucá/Divulgação).

A sequência que vem à mente mais facilmente é o momento principal do filme, quando os heróis finalmente vão às fossas abissais (não deixe o título enganar, este não é o foco do filme) e passam longos momentos explorando as criaturas vistas no cardume. O momento é lindo, com cada peixe ostentando um estilo de arte único – contribuição de diversos artistas – mas não deixa de ser um pouco longo demais.

Assistir ao filme transpassa a sensação de presenciar um milagre. E se depender de Marão, ele vai continuar transformando suor em vinho. Paralelamente aos seus curtas, o segundo longa já está em pré-produção, nos restando saber o quanto do aprendizado de Bizarros Peixes das Fossas Abissais veremos na próxima empreitada.