Neste segundo livro da quadrinista sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim lançado no Brasil, a pauta continua sendo a reparação histórica. Desta vez, a narrativa aborda o drama de famílias separadas durante a Guerra da Coreia (1950 – 1953) e que até hoje, mais de 70 anos depois, seguem sem poder se reunir. De Gendry-Kim, a editora Pipoca e Nanquim lançou no ano passado a obra-prima Grama, sobre as coreanas prisioneiras de guerra que eram obrigadas a trabalhar como escravas sexuais para o exército imperial japonês na Segunda Guerra Mundial. Em ambos os relatos, o resgate da memória dessas pessoas torna-se um instrumento poderoso que serve como um registro – vivo e urgente – dessas injustiças.
Os trabalhos de Gendry-Kim se aproxima, dessa maneira, do jornalismo em quadrinhos e se afasta do relato autobiográfico, ainda que a autora se faça presente na obra, a exemplo de trabalhos como Maus, de Art Spielgeman e Persépolis, de Marjani Satrapi, com os quais é frequentemente comparada. O senso de emergência dessa HQ mostra que o tema é ainda bastante presente na sociedade coreana, ainda que o lado dramático das histórias pessoais dessas famílias seja ainda bastante invisibilizado.
Tratar dessas feridas históricas é uma maneira da autora se posicionar sobre a violência de estado e, numa camada altamente relevante em sua obra, do ponto de vista das mulheres nesses episódios.
A HQ acompanha a idosa Gwija, que busca informações sobre seu filho perdido com a ajuda relutante de sua filha Jina – narradora da história e um alter algo de Kendry-Kim. Com um relato que alterna flashbacks e narrativas no tempo presente, A Espera consegue traduzir o horror e a confusão do período que antecede a Guerra, ao mesmo tempo em que consegue tornar explícito a dor das vítimas, que nos dias atuais seguem sem saber o que aconteceu com os seus entes queridos. Iniciada dentro do contexto da Guerra Fria, a Guerra da Coreia dividiu o país e promoveu uma intensa migração forçada, além de deixar um saldo de 2,5 milhões de mortos. Os dois países seguem oficialmente em estado de guerra, até o presente momento, com as comunicações civis proibidas, apesar de um armistício ter sido assinado em 1953.
Gwija participa de um programa que busca promover o reencontro das famílias separadas, mas apenas por um breve momento. Somos testemunhas desses encontros dolorosos, que trazem a tarefa impossível que é resumir mais de 70 anos de distância num encontro breve e realizado em um espaço minúsculo.
Gendry-Kim segue com um estilo bem expressionista no uso do nanquim, que alterna momento de extrema delicadeza com traços mais grosseiros que refletem a crueza daquele período. Ela também segue dando espaço para o leitor trafegar pelo silêncio, assim como fez em Grama, como uma forma de dissipar no ar a dor e a violência retratada na narrativa. Destaque para a longa sequência de fuga de várias famílias em direção ao sul, no meio da neve, em uma odisseia que inclui um massacre promovido por caças americanos que miravam nos milhares de coreanos, muitos com crianças de colo. A reconstituição das paisagens desoladas da Coreia do Norte, em contraposição com a moderna Seul dos dias de hoje, também é impressionante.
A obra segue como um alerta para a preservação dessas memórias, mas também como um instrumento vivo de reivindicação de reparação, de justiça, mesmo que tardia. “A geração que viveu e experienciou a guerra segue morrendo”, alerta a autora, “e as lembranças penosas estão morrendo com elas”.
A ESPERA
De Keum Suk Gendry-Kim
[Pipoca e Nanquim, 252 páginas / 2021]
Tradução de Yun Jung Im
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