DINHO
Dinho, de Leo Tabosa. (Divulgação).

10º Recifest: primeira mostra competitiva e retrospectiva de Meujaela Gonzaga marcam abertura do Festival

Sessão “Eterno Retorno a um Estado Nascente” trouxe obras voltadas para o descobrimento e florescimento da experiência queer

Teatro do Parque, Recife (PE)

Quem resolveu investir as horas da noite da última segunda-feira (16) numa sessão de cinema no Teatro do Parque, encontrou aconchego, e não apenas na belíssima estrutura e confortáveis poltronas, mas nas pessoas e nas produções. A sala não estava lotada, mas ocupada o bastante para produzir um calor familiar. E era justamente esse tipo de experiência que parecia estar na mira da curadoria da 10ª edição do Recifest – Festival de Cinema da Diversidade Sexual e de Gêneropara sua noite de abertura.

Saindo da ressaca do Animage – que há duas semanas iniciava suas atividades no mesmo palco – a escala do Recifest parece menos com uma maratona. Ao invés das centenas de filmes espalhados em múltiplos polos e horários, o festival queer opta por um evento voltado em entregar suas mensagens a quem mais precisa ouvi-las, seja através de exibições itinerantes, oficinas ou masterclasses. Nas mostras, isso se traduziu em sessões mais curtas, centralizadas e consequentemente intimistas.

E os cinco curtas-metragens do bloco “Eterno Retorno a um Estado Nascente” eram todos, de alguma forma, sobre aconchego. E comunicar otimismo, aceitação e a possibilidade de amor a uma comunidade que sofre um universo de adversidades diariamente é inegavelmente uma função social de importância subestimada.

O primeiro filme apresentado, o autorretrato baiano Tá Fazendo Sabão (2022), de Ianca Oliveira, pontua a priorização pelo discurso além até mesmo da técnica. A obra é uma simples montagem de fotografias de família, sem muita cinematografia, acompanhadas pelo poderoso monólogo da realizadora, que relata seu descobrimento como lésbica desde criança, o descobrimento do afeto através da relação com as mulheres de sua família, e a consolidação da sua identidade.

A temática de descoberta queer durante a infância se mantém em Dinho (2023), do recifense Leo Tabosa, que segue a véspera de natal do jovem personagem-título, lidando com o retorno de sua mãe ausente, que o abandonou com a tia no interior para viver no Recife com o novo marido, e a partida de seu melhor amigo, que estuda em Fortaleza. Veterano, Tabosa dispõe de experiência e recursos que se destaca em tela, da encantadora fotografia e direção de arte imersiva à delicadeza do discurso ao representar as diferentes referências adultas em colisão no desenvolvimento da criança, a adultização de quem foi forçado a crescer, e o nascimento de amor e afeto inocente, mesmo que não identificado.

Outro pernambucano, Todas as Rotas Noturnas Conduzem ao Alvorecer (2022), de Felipe André Silva, acompanha Alexandre, recém saído da prisão, com dificuldades de se reintegrar à sociedade e fazer amizades, se restringindo ao silêncio e à solidão de seus livros, até que a iniciativa de um colega de trabalho oferece conforto. O roteiro de Silva brilha ao retratar com precisão a comunicação entre dois homens que se desejam em ambientes predominantemente heterossexuais, acentuada pela carga extra de preconceito e falta de afeto carregada por um ex-presidiário. O interesse entre Alexandre e Robson se dá pela ausência de olhar e palavras até que explode em intensidade sexual que não necessariamente acontecerá de novo, mas que foi o bastante para trazer o protagonista cada vez mais perto da superfície.

Ave Maria de Pe Moreira RJ
Ave-Maria, de Pê Moreira. (Divulgação).

O carioca Ave Maria (2022), de Pê Moreira, retrata um cenário familiar não muito distinto do vivido por boa parte da população brasileira. Maria saiu de casa após o falecimento de seu pai, retornando apenas no natal do ano seguinte para remendar os laços com sua mãe, avó e irmãos, que se esforçam para abraçar a identidade da primogênita. Justamente por abordar pertencimento familiar, o filme investe seu tempo nos personagens, com longos diálogos sem cortes ou movimentos de câmera, sustentado apenas pelo roteiro e elenco, que entrega.

A sessão foi encerrada com o paulista Se Trans For Mar (2022), de Cibele Appes, mais uma vez trazendo o aconchego do afeto familiar, mas desta vez focado em outro lado da realidade transgênero no país – quem precisa encontrar seu lar fora de casa. Acolhida por uma família que a aceita e ama, Iara trabalha com ações sociais para pessoas trans em situações como a que um dia esteve. É neste ambiente que descobre, além do afeto fraterno, a possibilidade de amor romântico que não achou que teria.

O filme opta por passar seus discursos da forma mais objetiva possível, em sessões de debate e troca de experiência entre Iara e outras pessoas trans, sem prezar tanto por manter a ilusão cinematográfica. A imersão narrativa é quebrada, mas o curta cumpre sua função social de ensinar, promover reflexões e, acima de tudo, oferecer uma luz a quem precisa.

As performances primais e futuristas de Meujaela Gonzaga

Além da mostra competitiva de curtas, a noite contou ainda com uma sessão especial em homenagem à artista, performer e operadora de drones pernambucana Meujaela Gonzaga, falecida neste ano em São Paulo, onde buscava conquistar seu espaço no mercado audiovisual.

A Mostra Meuja contou com quatro trabalhos de videoarte e performances: Paraquedas (2022), Náka (2020), Xawara Hesi (2021) e Teste “toda vez que banho no rio viro minha biza” (2022). Psicodélicas, primais e até mesmo futuristas, Meujaela usa da dança e do corpo para realizar uma comunhão com a natureza e sua própria espiritualidade e ancestralidade.

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