Salvar o Fogo
Itamar Vieira Junior
Todavia, 320 páginas, 2023, R$ 76,90
“Eu não quero sofrer nada se for para aprender”, disse Ailton Krenak na Flip, em 2021. A frase, pronunciada em um dos anos mais trágicos da pandemia, contrapunha um discurso permeado de positividade e exaustivamente entoado por muitos naquele tempo de que a desgraça que nos abatia tinha algo a nos ensinar sobre a vida. “Se ensinasse alguma coisa, os povos da diáspora, que sofreram uma inenarrável tragédia, estariam todos curtindo demais o século 21, depois de terem passado o inferno que passaram na escravidão.”
Ao depositar na dor a promessa de redenção, esse tipo de mentalidade, enraizada na tradição cristã, desperta para um conformismo que justifica toda sorte de injustiças e flagelos sem demandar nenhuma mudança nas estruturas de poder. E é esse cenário de controle pela fé que testemunhamos de forma tão brutal na fictícia Tapera do Paraguaçu, povoado rural de Salvar o Fogo, o novo romance de Itamar Vieira Junior.
A aldeia, localizada às margens do caudaloso rio baiano que a batiza, se acomoda nos arredores do mosteiro católico que lá existe, ainda que não se saiba ao certo desde quando. A disposição geográfica em função da grande construção se reflete na vida, rotina e costumes da população afro-indígena, que a cada dia aparenta esquecer mais suas próprias origens em meio a uma realidade acachapante de imposição da fé e de controle das terras por arrendamento.
O livro, que é o primeiro do autor depois do sucesso que se tornou Torto Arado, expande o universo do best-seller, de forma que personagens canônicos ressurgem passageiramente. Dividida em quatro partes, cada uma composta por capítulos curtos e narradas a partir de diferentes focos, a obra se debruça sobre a história da família de Maria Cabocla através de uma narrativa arrebatadora que retoma a questão da terra e traz à tona as dinâmicas de poder do campo assentadas num violento passado colonial.
A cada página, fica evidente que a ficção que se constrói só pode ser contada por alguém que se demonstra profundamente conhecedor e atento às sensibilidades do seu próprio povo. Salvar o Fogo adquire, antes de tudo, contornos de denúncia porque resgata de forma palpável algo que está fartamente documentado na história, mas que ainda parece ser escondido por debaixo dos panos: o papel da Igreja Católica na escravização e subjugação dos povos negros e originários.
Herança daqueles tempos, a fé arraigada na Tapera se transforma em ferramenta de controle sobre os hábitos de uma população que vive amedrontada pelo Mal, uma abstração sempre à espreita que se manifesta desde as crenças e saberes compartilhados pelos mais velhos até à chegada de uma mulher que parece não se subordinar aos bons costumes pregados.
“Nosso Senhor Jesus Cristo ressuscitou homens, Ele próprio ressuscitou e se levantou da morte. Nenhum chá, nenhum banho de folha, nenhum feitiço ressuscitou alguém. Mas se Deus faltava, perdoe o pecado, meu Deus, mas se Ele não conseguia fazer a solução chegar para nossos males, nem sempre era de Sua vontade porque decerto queria que aprendêssemos com a dor. Mas nosso corpo foi aprendendo a conhecer seus limites, não éramos santas nem bem-aventuradas, então a sabedoria dos mais antigos poderia nos aliviar. E, se bem não fizesse, mal também não faria.” (p. 134).
Assim, se algo de ruim acontece à pequena aldeia, resta aceitar que o sofrimento se manifesta como uma espécie de autoflagelo, alimentado pelos males que abatem o povo. Contudo, é sobre a protagonista Luzia do Paraguaçu e sua protuberante corcunda que recai o fardo de representar o Mal em forma de gente. Ela, que vive com o pai Mundinho e o irmão Moisés, é a última das suas irmãs mulheres a permanecer no povoado, onde é condenada por um povo alienado da sua própria identidade e memória.
Em uma narrativa com intensa força visual, mas antes de tudo calcada em um despertar sensorial, o fogo surge na vida Luzia como uma espécie de graça, mas também de maldição. Se a habilidade de antever as chamas se apresenta como um dom que atravessa os séculos para alcançá-la, na mesma medida, as mesmas chamas crepitam o fardo da sua gente, os deserdados da terra, os despossuídos do campo.
Testemunha da vida e do tempo, a terra dita o ritmo dos acontecimentos no vilarejo e, ao lado da gestão da fé, sua posse constitui um importante mecanismo de poder, num cruel “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. No entanto, se ela é onipresente e se alastra em cada pedaço de chão conhecido, significa dizer também que se revela como dimensão fundamental para a (re)construção do passado e, assim, aqueles que não possuem terra, carecem de memória.
“Como será que seus avós tinham chegado àquele lote? Herdaram dos antepassados? Foi benesse da carola abastada, que depois doou tudo à Igreja? Como saber, se a memória se apaga, se as pessoas se esquecem com a mesma urgência com que recordam ser preciso viver? Os que vieram antes, muito antes dos que aqui estavam, foram embora de que maneira? Jamais saberia a história dessa terra, dos seus, jamais poderia contar com o sentido de uma história antiga, remota, para justificar a vida presente. Luzia compreendia o hoje e um pouco mais além, mas não era capaz de avançar o suficiente para saber de que era feito seu espírito. Se sua história se resumia às lembranças de sua família, em seu sangue, mal sabia, corria um rio imemorial.” (p. 246)
Dito isso, neste novo romance, Itamar Vieira Junior tece uma narrativa mágica e épica, onde o heroísmo reside na força ancestral e o fantástico ressoa na dureza da realidade à qual Luzia, Moisés, Mundinho e o povo da Tapera estão subordinados. Embora corra menos riscos que a fábula anterior, o escritor reafirma em Salvar o Fogo seu sólido projeto literário com maestria, ecoando vozes e vivências que, ainda hoje, merecem mais espaço no cânone literário.
Este post contém links de afiliados. Comprando através dos links podemos receber comissões pelas vendas. Isto ajuda a manter o site no ar.
Leia mais críticas de livros
- “Nadando no Escuro” evidencia o amor romântico para falar da repressão gay na Polônia comunista
- “O Último Sonho”: novo livro de Pedro Almodóvar é tão instigante quanto seus filmes
- “Da próxima vez, o fogo”, de James Baldwin: um livro incontornável para os debates sobre o racismo
Consuella, o filme que lançamos em 2023
2023 foi bem especial pra gente! Lançamos o curta Consuella, dirigido por Alexandre Figueirôa, editor-executivo da Revista O Grito!. O filme resgata a história de uma importante personalidade artística do Recife, que viveu seu auge nos anos 1970-80 e que abriu portas para diferentes artistas LGBTQIA+. O curta percorreu o circuito de festivais e teve uma première concorrida no Teatro do Parque, com a presença de pessoas que conviveram com Consuella, além da equipe que produziu a obra. Trata-se de uma importante memória da excelência trans, de alguém que ousou peitar as convenções tradicionais e conservadoras de sua época.