Forçando limites do cinema com outras artes, Wenders usa teatro e 3D para refletir sobre a existência
Wim Wenders tem se empenhado em estabelecer diálogos profundos com outras artes, enquanto aprofunda a própria experiência cinematográfica. Foi assim com a música em Buena Vista Social Club (1999), com a dança em Pina (2011), e com a fotografia em O Sal da Terra (2014). Agora, em Os Belos Dias de Aranjuez (2016), o diretor traz para o cinema o teatro de Peter Handke, que já havia colaborado com o diretor em Asas do Desejo (1987). A música, aliás, cumpre papel fundamental neste filme com direito, inclusive, a breve participação do compositor Nick Cave.
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Numa casa localizada nos arredores de Paris, um escritor alemão (Jens Harzer) vai, ao som de seu jukebox, vislumbrando o surgimento de dois personagens que ocupam seu jardim. Pouco a pouco, Fernando (Reda Kateb) e Soledad (Sophie Semin) ganham vida própria, travando um diálogo de laivos psicológicos e filosóficos sobre infância, sexualidade, masculinidade e feminilidade. O diálogo vai se desenvolvendo segundo acordos feitos entre as personagens, acordos dos quais vamos tomando conhecimento aos poucos, conforme são enunciados ao acaso. Essa é a premissa do novo filme de Wim Wenders, centrado nas elucubrações de seus personagens.
O jardim da casa surge como espécie de Éden, um idílio que, no verão, parece estimular prazeres intelectuais tanto no escritor, como em seus personagens. Este estímulo à atividade intelectual aparece condensado na maçã – o fruto do conhecimento e a tentação de Eva -, presente tanto na mesa do jardim, quanto na miniatura desta, que se encontra sobre a escrivaninha do escritor. Este efeito miniaturizante, aliás, irá se projetar sobre todo filme. O esforço de Wim Wenders é erguer o microcosmos desse Éden particular, para poder explorá-lo através de uma câmera que penetra o espaço. Essa premissa é potencializada pelo recurso do 3D – já explorado por Wenders em seu Pina.
O filme se inicia já enunciando seu projeto de miniaturização, indo de planos bastante abertos de Paris, executando sutis travellings (movimentos de câmera horizontais), que passam do centro da cidade até o recanto em que se encontra a casa do escritor. Vamos, aos poucos, penetrando na casa, sempre por meio de uma câmera flutuante, como se uma entidade, um espírito, pairasse sobre o lugar. Este espírito é como o éter que compõe o idílio da casa e que liga o criador às criaturas. Essa câmera flutuante também é responsável por penetrar o microcosmos, dando-lhe organicidade e vida, algo indispensável, haja visto que a Natureza, neste filme, desempenha papel central: O vento que agita as folhagens parece ser sempre o responsável por animar cada reflexão e inflexão por parte dos personagens.
É curioso, no entanto, que a Natureza esteja sempre como objeto a ser apreendido pelo intelecto, o que, na realidade, rima com o projeto miniaturizante de Wenders: é preciso tornar o objeto alcançável, tangível, para poder apreendê-lo e compreendê-lo. Assim ocorre com a já citada maçã e também com a limonada, ambas permanecem intactas durante todo o filme sobre a mesa de Fernando e Soledad, apenas como índice da Natureza. Natureza essa que anima toda sorte de sentimentos nos personagens: da descoberta erótica da primeira infância à redescoberta do deleite no adulto que, vagando, encontra frutos selvagens suculentos, disponíveis para imediato consumo. De novo, tudo ao alcance da mão, ou melhor, do intelecto: tudo tangível de alguma forma.
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Uma conversa sobre O Sal da Terra
Há aqui uma escala de miniaturas, assim como ocorre com as matryoshkas, as bonecas russas que contém umas às outras: Paris contém a casa do escritor, que contém o Éden de seus personagens, que buscam apreender a realidade através de sua miniaturização, colhendo todos os frutos do pomar. Às chagas de nosso tempo, Wenders busca responder quase como Kiarostami (ocorre, inclusive, uma citação um tanto velada a Gosto de Cereja, de 1997), embora insistindo especialmente na verborragia, de modo que, se no filme de Kiarostami há uma linha narrativa de cunho existencialista, no de Wenders fica difícil delinear qualquer estrutura narrativa, haja visto que até mesmo o diálogo de seus personagens se desprende do encadeamento puramente lógico, sendo conduzido muito mais pelo sabor do vento, da intuição do espírito, por associações que, em determinados momentos, mostram-se quase primitivas, ou pueris.
O filme demonstra que a apreensão intelectual que seus personagens buscam é menos uma pura operação algébrica, ou uma fórmula geométrica, e muito mais uma especulação do espírito, mais próxima da reflexão teológica, que não deixa de produzir um raciocínio lógico, mas que, ainda assim, retira suas forças de intuições e crenças pré-estabelecidas. É desse tipo de reflexão que se constitui Os Belos Dias de Aranjuez, transformando, pelo verbo, os frutos do mundo em ponte para uma explicação global desse mesmo mundo.
Seria fácil assumir que essa postura centrada no verbo é ”anti-cinematográfica”, mas o projeto de Wenders parece ser justamente borrar as fronteiras entre teatro, em que o verbo pode reinar sem causar maiores espantos, e cinema, em que ainda se busca certa pureza que diz: cinema é ação e imagem. Pois falar e pensar é agir, e o cinema francês, mais à vanguarda, sempre soube colocar isso de maneira bastante cinematográfica, e é com essa tradição francesa que Wenders dialoga. É possível que ainda se interprete essa investida do diretor alemão apenas como afetação ou vício. Creio antes que ela deva ser entendida, ao menos, como uma experiência ousada, aprofundando duas experiências usualmente colocadas em polos opostos num único recipiente.
O 3D faz o espectador imergir na Natureza que envolve seus personagens, faz com que o espectador sinta as folhagens (e assim também o vento) que inspiram Fernando e Soledad. Se a experiência de Wenders é completa e bem-sucedida em tudo aquilo a que se propõe, sou incapaz de dizer, mas ele deixa claro que sua preocupação central segue sendo o cinema, confrontando, através da própria atividade cinematográfica, a tradição ensaística do cinema francês (não parece à toa que seu filme seja francófono), com o 3D usualmente ligado ao cinema de espetáculo, ilusionista. Ao final, inclusive, Wenders ainda vai questionar o estatuto atual da imagem aproximando-se de um pequeno quadro (miniatura), em que vemos uma paisagem idílica, muito semelhante àquela do filme. Conforme nos aproximamos do quadro, saltam da tela, os pixels que compõem aquela imagem 2D, supostamente feita à mão. Assim, revela-se o estatuto do próprio filme: ele mesmo uma miniatura digital, disponibilizando-se ao nosso exame.
OS BELOS DIAS DE ARANJUEZ
De Win Wenders
[Les beaux jours d’Aranjuez, FRA, 2016 / Imovision]
Com Jens Harzer, Reda Kateb e Sophie Semin