Resenha: O baile de máscaras em Jackie, de Pablo Larraín

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Antes de mais nada, Jackie (2017), de Pablo Larraín, é um filme elegante, talvez buscando emular a elegância de sua própria retratada: a ex-primeira-dama dos EUA, e viúva do ex-presidente John F. Kennedy, Jacqueline Kennedy (Natalie Portman, dignamente indicada ao Oscar de Melhor Atriz). A elegância vai desde a direção, passando por todo o departamento de Arte (não à toa o filme também foi indicado ao Oscar de Melhor Figurino), até o roteiro de Noah Oppenheim que, mesmo cambaleando, não chega a perder a pose por completo.

É curioso, entretanto, notar como esta elegância não serve de mero adorno à história, e nem serve apenas para reforçar o refinamento estético de Jacqueline Kennedy. A elegância serve antes para indicar o baile de máscaras que se desenrola ao longo do filme. A vida dos Kennedy é envolta de forte caráter calculado e artificioso. Até mesmo a interpretação de Portman é penetrada por essa noção, a atriz emula o sotaque e os trejeitos de Jacqueline de maneira absolutamente estudada, como se a própria primeira-dama estivesse, na maior parte do tempo, desempenhando um papel. Aqui Larraín volta a uma questão fundamental que já surge em seu ótimo No (2012), que é a relação estreita e escorregadia entre mídia e política e, sobretudo, o papel dessa relação na História recente.

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O recorte histórico trazido pelo filme é bastante interessante, transformando-o menos numa biografia e mais num conjunto de reflexões ensejadas pelo registro de uma Jacqueline Kennedy já enlutada. O filme apresenta, numa estrutura não-linear, a primeira-dama nos dias que se seguem ao assassinato de seu marido. Assim, somos levados a saltar de uma entrevista concedida por Jackie ao jornalista Theodore White da revista LIFE, para o processo de luto da viúva e os preparativos do enterro de JFK, que ela encabeça de maneira determinada. Tudo isso é entremeado por sequências confessionais, em que Jackie expõe seu íntimo para o padre (John Hurt, num de seus últimos papéis cinematográficos) que irá enterrar seu marido. Estas sequências confessionais rendem os melhores momentos do filme, nos quais são colocadas questões sobre fé, mortalidade e luto, questões essas que desembocam, um tanto inesperadamente, em conclusões bastante existencialistas. O personagem de John Hurt é uma espécie de oráculo que acaba por ser, em grande medida, responsável pela redenção final de Jackie.

A questão da efemeridade perpassa todo o filme, mas não apenas em termos existenciais. Ao fim do filme, há uma sequência em que Jacqueline Kennedy vê lojas trocando suas vitrines, fazendo-a perceber que ela será substituída em breve, na política e na mídia, como um artigo de moda. A protagonista, portanto, debate-se também com a mortalidade simbólica, ainda mais numa era em que as mídias, sob a forma mais acabada da televisão, começam a processar as informações em ritmo incessante. Assim, a protagonista preocupa-se meticulosamente em recriar a imagem de seu marido, erigindo um presidente que talvez nunca tenha existido.

É principalmente após ser confrontada pelo irmão de seu marido, Robert F. Kennedy (Peter Sarsgaard), que Jackie convence-se de vez a remodelar a imagem de seu marido, num ato quase performático protagonizado por ela mesma e por seus filhos. Obcecada pela pureza da imagem dos Kennedy, ela também irá filtrar toda a informação que será publicada na entrevista que concede, e que acaba, em suas breves duas páginas, por transforma a Casa Branca sob John F. Kennedy numa segunda Camelot (originalmente o reino e o castelo do lendário Rei Artur).

O que Robert Kennedy diz à Jackie para que ela mude de ideia (embora nessa sequência ele esteja antes lamentando-se do que persuadindo-a) é que eles, os Kennedy, são apenas “as pessoas bonitas”, em oposição, por exemplo, aos feitos do ex-presidente Abraham Lincoln, que também fora assassinado. Além disso, diz Robert, John Kennedy poderá ser lembrado tanto por ter dado um fim à Crise dos Mísseis, como por tê-la criado. A história, afinal, é “dura”. É aqui que a primeira-dama, que até então oscila entre a discrição e os grandes atos político-performáticos, embarca de vez na missão de transformar as “pessoas bonitas” em legados históricos, mas não, é claro, sem uma grossa camada de imagens técnicas e milimetricamente produzidas com a mesma elegância que a própria Jacqueline Kennedy moldou sua própria máscara. E é aqui que o filme ganha força.

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O filme é um instigante estudo de personagens que parece constantemente querer penetrar a máscara de Jackie, ainda que inutilmente. Mesmo que a acompanhemos de perto durante e após o assassinato, ainda ensanguentada, ou mesmo mais tarde, quando ela busca um jeito razoável de informar seus filhos sobre a morte do pai, nada disso parece ser suficiente para penetrar a máscara. E aqui está a maestria de Portman nesse papel, não é que ela não transmita verdade na dor e sofrimento de sua personagem, como ela de fato o faz na sequência do assassinato, mas sim que todo o sofrimento seja constantemente dissimulado e remodelado.

Esta impenetrabilidade é traduzida de modo bastante sublime por Larraín e seu diretor de fotografia, Stéphane Fontaine. Para tanto, eles trazem planos abertos que executam travellings in (movimento de câmera horizontal para frente), em que Jackie está sempre centralizada, e vai sendo aproximada de nós aos poucos. Este recurso é frequentemente utilizado para internalizar o espectador na psique da personagem, mas nesse caso, o alto grau de artificialismo gerado pela precisão estética, tanto da fotografia como da arte, acabam por jogar o espectador para fora da psique de Jackie. Somos incapazes de penetrar a máscara. Os únicos momentos em que quase a desvendamos, são quando ela está com o padre, mas mesmo esses momentos são demasiadamente breves.

É uma pena, entretanto, que o roteiro cometa erros cruciais. Embora seja perfeitamente capaz de contar o drama humano por trás da figura de Jackie, e esteja sempre à beira de desmistificar a figura dos Kennedy, sobretudo ao ousar questionar o legado de JFK, a despeito de ele ser constantemente lembrado como um grande presidente, o filme nunca chega de fato a tal desmistificação. Em alguns momentos somos até levados a pensar que talvez o filme compactue com a existência do legado que ele mesmo demonstra ser, em alguma medida, construído. E esta inconsistência não é mero detalhe, mas sim um ruído grave no discurso do filme, ainda mais se levarmos em conta que o diretor é chileno (e conhecemos o legado de Kennedy aqui pela América Latina).

Além disso, as sequências da entrevista, embora possuam algumas tiradas inteligentes, não chegam a convencer. O embate entre Jackie e o jornalista, canhestramente retratado como um intrometido hostil, é fraco. E ao final, o jornalista curva-se diante da majestade da primeira-dama, o que é um dos motivos para eu me perguntar sobre até onde o filme questiona o legado de JFK. Não que o lugar aonde ele chega não represente algum grau de ousadia enquanto produção hollywoodiana. A última questão relativa ao roteiro é que o drama que se desenvolve em flashback, embora seja pontualmente denso e intenso, não atinge uma curva dramática potente, uma vez que, sempre que devíamos nos identificar em profundidade com os personagens, somos levados de volta àquela entrevista morna.

Mas há um ponto que não pode ser ignorado, e que é o ponto alto de Jackie: a trilha musical, pela qual o filme também foi indicado ao Oscar. A trilha de Jackie é assinada por Mica Levi, a mesma da magistral trilha de Sob A Pele (2013), de Jonathan Glazer. Se a Academia for justa, e ela não costuma ser, Mica Levi leva o prêmio. A musicista continua trabalhando com suas cordas sintetizadas, sempre muito dissonantes, mas ao mesmo tempo sublimes. Talvez nada mais pudesse traduzir melhor, e a um só tempo, a justaposição entre a máscara elegante e o sofrimento de Jacqueline Kennedy.

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De Pablo Larraín
[Jackie, EUA, 2017 / Diamond Filmes]
Com Natalie Portman, John Hurt, Greta Gerwig