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A ideia de quadrinhos negros em um país como o Brasil, composto por mais de 50% de negros (pretos e pardos) e com um nível de discussão racial ainda tão preso à perspectiva moral, pode parecer estranha a uma parcela considerável da população. Sem dúvida, o passo seguinte ao estranhamento seria “existem quadrinhos brancos?” e, então, avançaria para “por que inventar mais uma nomenclatura para uma mídia neutra?” Para entender melhor a questão, é importante voltarmos à história das HQs nas Américas.
A narrativa convencional da história dos quadrinhos nas Américas parte do humor gráfico das tirinhas de jornais estadunidenses como uma espécie de mal necessário para chegar ao auge da sofisticação predestinada: os super-heróis “sombrios” da Era de Ferro.
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Nesta grande narrativa, as contribuições de artistas que pertencem a grupos sociais minorizados são ignoradas. Há sempre ressalvas sobre o teor racista, sexista, homofóbico e um esforço hercúleo de manter intactas as impressões das obras clássicas “porém ofensivas”, como se representações estereotipadas e estigmatizantes fossem detalhes; “frutos de seu tempo”.
Para aqueles que ainda acreditam em “homens do seu tempo”, em geral, defensores incansáveis da “qualidade acima de tudo”, a presença do negro como personagem é minimizada; o racismo é tratado como assunto secundário dentro do grande tema que são os quadrinhos e, nos momentos em que se menciona a autoria negra, em vez de se aterem às contribuições, notamos nos discursos o desejo de confirmar a ideia de que “qualidade” é inversamente proporcional à “diversidade”. Nestas discussões, raramente é questionado como esses parâmetros de qualidade se constituem, quais os objetivos de quem os instituiu e quais visões de mundo eles constroem (sim, narrativas representam o mundo e também o transformam, mas isso
é tema de outra conversa).
Por que negros nos quadrinhos?
Se em vez de adotar como ponto de partida o Menino Amarelo (Yellow Kid), criado por Richard Felton Outcault, considerarmos deslocá-lo para um tempo anterior até mesmo aos precursores Rodolphe Topffer e Angelo Agostini, teremos uma perspectiva mais ampla do tema. Ao abordarmos a história das histórias em quadrinhos nos Estados Unidos norteadas pelo debate levantado por John e Selma Appel em Comics da imigração na América (Editora Perspectiva, 1994), observaremos que os comics são herdeiros dos panfletos, cartões publicitários e postais que uniam texto e charges e eram reproduzidas por litografia entre 1880 e 1890, após a Guerra
de Secessão.
Desta maneira, cabe observar que os anunciantes buscavam aumentar suas vendas e uma das estratégias era estabelecer o ponto de vista do público-alvo refletindo percepções étnico-raciais alinhadas às leis de segregação negra e amarela (Jim Crow), bem como formas estigmatizantes de judeus e imigrantes irlandeses, italianos e russos. Este imaginário, refletido nas peças publicitárias, destilava um explícito tom satírico contra os grupos minorizados, refletindo uma visão de mundo majoritariamente branca.
Essa visão universalista do sujeito branco, interpretada como neutra, torna a historicização de boa parte dos trabalhos acadêmicos sobre histórias em quadrinhos o espelho de uma narrativa ortodoxa que naturaliza a assimetria e desvalorização de todos aqueles que não são homens cisgênero, brancos, heterossexuais, anglófonos, protestantes e de classe média.
Essas abordagens tradicionais, quando problematizam seriamente as representações raciais e de gênero, normalmente relegam a uma discussão topicalizada, isto é, ou centralizando a discussão em raça ou gênero (feminino cisgênero) ou homossexualidade. Isto corrobora a violência discursiva (em especial o apagamento) contra sujeitos negros cuja identidade desliza para outras práticas sexuais, identidades de gênero e corporalidades, por exemplo. Além disso, buscar categorias tão estritamente é um modo de naturalizar o racismo estrutural, porque minimiza as
causas e efeitos do que é uma questão central nos países que foram colonizados durante a Modernidade e permanecem presos às contradições identitárias e econômicas forjadas naquele contexto.
Enquanto as gerações de imigrantes europeus foram deixando seus assentamentos sociais aos poucos (o que é similar ao Brasil), o povo negro continuou submetido a condições de subcidadania que o impedem de romper coletivamente o ciclo de empobrecimento e falta de acesso à saúde e educação de qualidade, fatores importantes para consolidação do que a filósofa Angela Davis chama de democracia da abolição (a cidadania plena). Para a história das HQs, esse fato é relevante porque a grande indústria como conhecemos hoje foi assimilando os descendentes desses imigrantes outrora discriminados, passando a preconizar um discurso antinegro, ora sutil, ora explícito. Em “Marvel Comics: História Secreta”, do jornalista Sean Howe, por exemplo, o único colaborador negro citado é Billy Graham, que trabalhou em títulos com “temática negra” na editora, entre os anos 1960 e 1980, como The Jungle Action, Luke Cage e Heroes for Hire (Heróis de Aluguel).
Cabe destacar que, graças aos esforços da audiência, catalogações online evidenciam que artistas como Alitha Martinez, Nilah Magruder e Afua Richardson têm colaborado em títulos relevantes há anos sem serem lembradas. Neste sentido, o mainstream, quando não oferece espaço para o artista (no caso de Graham, que era “o artista negro”), ignora parcial (Magruder) ou completamente sua contribuição (Martinez).
Assim, as HQs mainstream se configuram como (ideologicamente) brancas, mesmo quando o mercado indica maiores vendas de edições “diversas” como a “nova” Miss Marvel de G. Willow Wilson e o Pantera Negra de Ta-Nahisi Coates. Note que uma mulher muçulmana é chamada pra escrever uma personagem muçulmana, o homem negro um herói negro e, acrescentemos, Roxaney Gay, que se identifica como bissexual e foi convidada para escrever uma história sobre mulheres negras sexualmente dissidentes – Pantera Negra: World of Wakanda. Três décadas depois de Graham, os locais determinados para autores negros se mantém intactos, ao mesmo tempo em que o espaço dos “personagens e temas negros” são ocupados majoritariamente por homens brancos. Apesar dos comentários políticos e sociais desfavoráveis das tirinhas e das histórias de super-heróis, constantemente atacando populações africanas ou afrodescendentes, retratados apenas em conflito com a lei, os quadrinhos ofereciam a baixo custo um necessário escapismo ao antagonismo social e às privações; eram um exercício imaginativo em oposição à falta de perspectivas reais.
Além disso, um fator determinante para a formação deste público ávido por comics foi a ampla distribuição dos títulos da Marvel e DC, em oposição aos quadrinhos alternativos, cuja desvinculação da Indústria possibilita maior autonomia da equipe criativa e, portanto, possibilidade de expressar pontos de vista mais amplos.
Quadrinhos negros?
Contrário ao que possa parecer, os quadrinhos alternativos também padecem dos mesmos males estruturantes da sociedade. Sob o pretexto da “liberdade de expressão”, autores como Robert Crumb, por décadas, apresentavam visões de mundo racistas e misóginas, por sua vez defendidas pela audiência que compartilha ativa ou passivamente deste imaginário. Assim, para a pesquisadora Sheena Howard, autora de Black Comics: politics of race and representation (vencedora do prêmio Eisner, em 2014, na categoria Melhor Trabalho Acadêmico), a percepção de raça e racismo é normativa no mainstream, mas não se restringe a ele, de modo que personagens e artistas negras e negros de quadrinhos são antagonizados por ambos os mercados. Ao considerar essa realidade, Howard argumenta que reivindicar o conceito de Quadrinhos Negros como categoria distinta de Quadrinhos Alternativos é importante, por demarcar uma perspectiva comprometida com a representação de negritude que extrapole os estereótipos e fantasias de poder que impõem limites simbólicos e concretos,
propondo novas imagens.
Para Howard, Quadrinhos Negros (black comix) são alternativos apenas no que tange a limitação de distribuição e na agência total da autora e autor, que possibilita a expressão de uma perspectiva mais ampla sobre negritude, alinhada com a visão crítica e potencialmente conscientizadora. A diferença, portanto, entre os quadrinhos convencionais – os quadrinhos brancos – e os quadrinhos negros, é mais que o lugar social da equipe criativa e do público: é o rompimento com a ideia de neutralidade. Ao inserir variações linguísticas, idiossincrasias, conhecimentos e experiências típicas deste corpo social, quadrinistas negras e negros desnaturalizam o teor normativo acoplado à ideia de que branquitude e universalidade são sinônimos.
Desde o início do século 20, havia quadrinistas negras trabalhando em jornais. Entretanto, devido à segregação, elas eram impedidas de se sindicalizarem e terem seu trabalho distribuído para um público mais amplo. Diferentemente do Brasil, os EUA contam com uma população afrodescendente minoritária, com cerca de 12,7%. Portanto, a guetização significa um prejuízo
epistemológico e material imenso para tais artistas, que ressoa nas gerações seguintes a delas até o presente. Howard alerta que, até 1991, apenas oito cartunistas negros haviam sido sindicalizados e, até 2009, Barbara Brandon era a única mulher negra cartunista entre esses profissionais.
Se você está lendo até aqui, deve lembrar que o auge dos quadrinhos negros estadunidenses, o ponto de encontro da autonomia e visibilidade, foi a criação da Milestone Comics, em 1993: a primeira editora de quadrinhos de negros para negros. Os artistas e roteiristas Dwayne McDuffie, Denys Cowan (criador do Super-Choque), Michael Davis, e Derek T. Dingleem criaram a Milestone Media Inc. Todos eles (e destaco MCDuffie cujo roteiro de Capitã Marvel #2 trouxe uma representação comprometida para a Marvel) tinham uma larga experiência de sucesso na produção de quadrinhos mainstream e observaram o desequilíbrio na representação de personagens racializados, além de sua falta de autonomia criativa como quadrinistas, e aproveitaram o momento da indústria propício à criação de editoras independentes como a Image, em 1992, e pavimentaram uma alternativa negra ao mercado branco. Embora a estrutura da indústria dos quadrinhos seja erigida sobre monopólios de distribuição e venda direta,
no intuito de dificultar a concorrência, e isso tenha prejudicado a Milestone, a editora tornou-se referência positiva em quadrinhos de qualidade, representativos e comprometidos politicamente.
Quadrinhos negros e negros nos quadrinhos no Brasil
Já no Brasil, a representação negra existe desde nosso primeiro quadrinho, Nhô Quim (1869) de Angelo Agostini – ainda que desprestigiosa. É o que afirma o livro O Negro nos Quadrinhos do Brasil, do professor e pesquisador Nobuyoshi Chinen. Mas o levantamento através das décadas demonstra que esta condição não inspiracional do personagem negro é recorrente até a década de 1970, ano em que a Turma da Mônica deixa de ser tirinha de jornal e passa a ser publicada
no formato revista.
Neste sentido, cabe salientar que o mainstream brasileiro é estruturado de uma maneira diferente dos Estados Unidos, embora a exclusão e apagamento se estabeleçam como mecanismos semelhantes de manutenção da perspectiva única nos quadrinhos. Não há consenso de que há um mainstream no Brasil, mas se considerarmos a potência e alcance das produções dos Estúdios Maurício de Sousa, não há exagero nesta categorização.
Também vemos uma semelhante invisibilidade histórica, reconhecida pelo próprio Mauricio de Sousa no prefácio de Jeremias: Pele, parte da coleção Graphic MSP e que recebeu o Prêmio Jabuti de Melhor História em Quadrinhos em 2019. Em sua introdução, Maurício afirma que o romance gráfico “me ajudará inclusive a corrigir uma injustiça histórica: apesar de ser um dos meus primeiros personagens, o Jeremias nunca havia protagonizado uma revista sequer”. A obra, sofisticada, intensa e sensível, ficou a cargo da notável dupla Rafael Calça e Jefferson Costa.
À exemplo do mercado estadunidense, o convencional replica a guetização e artistas rompem as barreiras com sua expertise. Em formato de publicação mais tradicional, finitas e empenhadas em lançar um olhar novo para o passado, estão obras biográficas como Carolina (de Sirlene Barbosa e João Pinheiro); as de temática histórica, como Cumbe e Angola Janga (de
Marcelo D’Salete) e Revolta dos Búzios (de Maurício Pestana). Já entre as publicações independentes, muitas vezes em formato de zine, temos um amálgama de artistas que buscam representar as experiências e perspectivas de negritude presentes, mais voltadas para a autorrepresentação, para o diálogo interior, para crises existenciais e narrativas do cotidiano. Dentre elas, destacam-se autoras como Ana Cardoso, Dika Araújo, Flávia Borges, Dharilya, Marília Marz e Ana Paloma Silva.
A crescente conscientização da população brasileira e a relativa democratização da internet e dos dispositivos digitais propiciou a visibilidade do debate sobre negritude e quadrinhos, bem como uma formação de público construída pela experiência de exclusão das mídias tradicionais.
As novas mídias e redes sociais deram espaço a novas vozes e ao fortalecimento de comunidades, em diálogo direto com autoras e autores, o que muitas vezes contribui para a produção final. Somado a isso, os estudos culturais, blogs (Preta, Nerd & Burning Hell, Lado Negro da Força), influenciadores digitais (Load Comics, Nigeek, Blerd Word, Afronerd) e eventos como a PerifaCon e a CCXP, aproximam fãs e artistas, oferecem divulgação e dão suporte financeiro via financiamento coletivo. Assim, as novas formas de comunicar e a crescente reivindicação por representatividade negra têm potencializado novas histórias.
Novas perspectivas
Os negros nos quadrinhos, seja como autores ou como personagens, têm uma ampla história – tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil. Mas ela é constantemente apagada e diminuída, a partir de historicizações que se propõem neutras e universais, enquanto minimizam perspectivas que se distinguem da norma.
A celebração acrítica do cânone também é responsável pela continuidade do imaginário que racializa e hierarquiza a “diferença” para, num nível mais concreto, violentar e justificar a atrocidade. Contra essa desumanização, propor a reflexão sobre a produção, distribuição, estrutura e sentido dos quadrinhos, que não apenas avance discursivamente como também dê visibilidade à gama de autoras e autores que têm construído uma alternativa ao mercado tradicional, é imprescindível. Nós já estamos no campo de fora da indústria, mesmo atuando como “estrangeiras e estrangeiros internos”; agora, só falta a indústria dar o passo além das defesas do ego e reconhecer que é branca: aí começa a verdadeira reparação.
Este texto foi publicado originalmente na edição impressa da revista Plaf. Acesse a página especial da revista e compre as edições anteriores.
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