Quando João Silvério Trevisan fala sobre o recém-lançado Meu irmão, eu mesmo (Alfaguara), de alguma maneira, contempla gerações de escritores e escritoras que enfrentaram e enfrentam o conservadorismo do mercado editorial com a temática LGBTQIA+. Um dos precursores do ativismo homossexual, autor perseguido e censurado pelo regime militar, vítima do preconceito e da desinformação que marcaram o auge da epidemia da aids no Brasil, Trevisan é dono de uma obra robusta.
Às vésperas do aniversário de 79 anos, lança agora o título que integra a trilogia inconclusa iniciada em 2017 com Pai, Pai (Companhia das Letras), fruto de um percurso analítico e de construção literária fundamentado na busca por uma poética de desvendamento da masculinidade, que aproxima o autor do feminismo.
Os três personagens que compõem a trilogia, o pai, o irmão e um companheiro, criam uma gradação do que o autor vem elaborando em torno da masculinidade há mais de 40 anos. A criação literária de Trevisan acompanha o tempo da pacificação, como ele mesmo admite. Essa obra autobiográfica, inédita na sua trajetória, foi iniciada com o livro, ainda não escrito, que fechará a trilogia e que segue na gaveta.
O título inaugural, começo do que chama de “striptease” literário, foi aberto com a frase: “tudo o que meu pai me deu foi um espermatozoide”. Narra a relação do autor com o pai, personificação do masculino tóxico e violento, em um processo que consumiu 20 anos de análise paralelo à feitura do livro, e que culminou com o perdão como resposta a a representação dolorosa da masculinidade.
Não faltam detalhes perversos na escrita corajosa de Trevisan, como a descrição do seu quase afogamento, jogado no meio do rio pelos primos e vizinhos, sem saber nadar e apavorado, em meio a risos e avisos de que aquilo era pra ele aprender a ser homem. “Nadei como pude, cheguei na margem, olhei para quelas pessoas, tive uma intuição muito parecida com o que elaborei depois, na analise, e disse, eu vou ser homem sim, mas não igual a vocês”.
Momentos emblemáticos como esse e tantas outros abandonos e violências a que foi submetido o levaram a compreensão do seu próprio masculino, em um processo que lhe permitiu “um afastamento por detrás do espelho da masculinidade tóxica”. Essa é a matéria-prima de Pai, pai.
Meu irmão, eu mesmo segue o mesmo tempo elástico de elaboração. Começou a ser escrito há quase 30 anos, como relato do processo de ajuda ao irmão mais novo, Cláudio, com quem tinha uma profunda relação de amizade e amor incondicional, no enfrentamento de um câncer. “Ofereci a ele, de um certo modo, elementos da figura paterna, que não eram da agressividade que nós todos víamos em casa” recorda o escritor, falando sobre a violência que marcou a família.
Cláudio, que acolheu com amorosidade a homossexualidade do irmão mais velho, morreu aos 48 anos, quando Trevisan, soropositivo, julgava estar com os dias contados. “Ele me abriu um outro horizonte para o masculino, muito além da toxidade que víamos ao nosso redor”, disse o escritor durante debate na Feira do Livro de São Paulo, que terminou no último dia 11 de junho.
Porto seguro emocional para Trevisan, a mãe, assim como o irmão Cláudio e o feminismo ajudaram a construção do homem e do autor. “Jamais conseguiria escrever Seis balas num buraco só (Objetiva), lançado em 1989, se várias gerações de feministas que vieram antes de mim não tivessem me alertado”, afirma. “O masculino é tão hegemônico que não acha digno ou necessário que se observe a sua natureza. Ele é a medida das coisas e o feminismo vem rachar esse olhar hegemônico e perigoso que tem criado problemas gravíssimos em nossa sociedade. Minha mãe não tinha a menor ideia do que era o feminismo, mas ela nos ofereceu isso”.
Em Meu irmão, eu mesmo, Trevisan fala da sua luta pela sobrevivência e vivência na escrita, a partir da dolorosa e brutal perda do irmão. Mas coloca novamente em foco a sociedade sorofóbica que definia o HIV como “peste gay” e que se atualiza espalhando preconceitos e fobias também e ainda entre a comunidade LGBTQIA+.
No momento em que se descobriu soropositivo, o escritor teve o lastro da família, mas preferiu não abrir o jogo. “Cheguei à conclusão de que o estigma da doença poderia me atingir de maneira mais forte”, explica, reconhecendo que, apesar de ter aberto caminhos para homossexuais e transexuais no Brasil, levou pauladas de todos os setores da sociedade, inclusive do campo cultural. “Vocês não podem compreender o clima e a pressão que vinham de todos os lados”.
Mas o autor avisa que não quer ser olhado com compaixão ou heroísmo. Deixa claro que escreveu o livro que agora lança, assim como escreveu o anterior e vai escrever o próximo em um esforço para se desnudar diante dos leitores. Quer que se perceba que não há diferença entre o que viveu/vive e o que as pessoas estão vivendo, ou viveram ou viverão. “A dor humana perpassa a nossa existência. Vivemos numa cultura voltada ao culto da felicidade, da juventude eterna, em um esquema altamente hipócrita, mediatizado pelo sonho de que podemos superar o que quisermos, que tudo depende da nossa vontade. Não é assim”.
Trevisan diz que não tem mais tempo de brincar de viver. Entende a responsabilidade que assume com o seu strepteaser literário, principalmente para si mesmo, sabe bem da importância da autodescoberta, do amor próprio, “cada ser humano tem a obrigação de se acolher, de se abraçar”, reforça. “O que quero dizer é que a minha explanação sobre a minha vida é um grãozinho de areia na experiência humana, e eu espero poder, através da minha literatura, oferecer algum elemento para que vocês se descubram”. A vida, declara, é uma canoa furada, mas é maravilhosa se nos dedicarmos a consertá-la.
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