Nordeste
Trecho de Mulher-Diaba no Rastro de Lampião, de Flavio Colin. (Reprodução).

O imaginário do Nordeste nos quadrinhos

Assim como outras artes, as HQs também contribuíram para inventar a ideia do território como parte de um imaginário místico e tradicional, o que leva a um debate complexo sobre identidade nacional, relações de poder e preconceitos

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No mito da coesão nacional, o Nordeste tem um espaço bem delimitado. É aquele território mágico, cercado de sabores fortes, sol onipresente e campos abertos, de uma cultura rica, plena de misticismo e mistério. Dentro de uma perspectiva irreal de uma identidade nacional conciliatória, essa idealização do nordeste pode soar suficiente, mas está longe da realidade e não contempla, nem de longe, a complexidade de uma região tão diversa social e culturalmente. A própria ideia de Nordeste é algo construído socialmente como fruto de uma batalha por uma hegemonia geopolítica, que emerge de uma tentativa de contrapor um sul industrializado e moderno a um Norte mais pobre e subalterno. Seria um território destinado a guardar o conjunto das memórias coloniais (e com ela toda suas violências e contradições), o que o historiador Durval Albuquerque chamou de “espaço da saudade”.

Por outro lado, ainda que nosso olhar se liberte desse verniz condescendente e imaturo, é impossível ignorar todas as tradições e riquezas culturais que se apropriam do imaginário do Nordeste. Desde o início do século 20, diversas obras de arte beberam dessas imagens e, com abordagens bem diversas, reforçaram ou desconstruíram estereótipos da região. O que é pouco debatido nos estudos sobre os processos históricos e midiáticos do desenvolvimento do Nordeste imagético é a contribuição das histórias em quadrinhos. Desde as primeiras charges de Angelo Agostini, as artes gráficas comunicam experiências cotidianas que ajudaram a formar essas representações nordestinas na cabeça do brasileiro. E se hoje falamos da urgência de uma nova visualidade para o Nordeste, para que se rompa com esses discursos bem demarcados do “povo nordestino”, são também os quadrinhos que podem trazer novas referências nesse debate — como mostram novas obras como Cangaço Overdrive, Bando de Dois e Aterro.

Os primeiros quadrinhos publicados no Brasil já se apoiavam numa lógica que reproduzia essa ideia do homem do campo subalterno e bruto. Um dos pioneiros das HQs no Brasil, Angelo Agostini, usava esse imaginário para fazer crítica social com seu personagem Nhô Quim, de 1870 — um caipira que tenta se introduzir na metrópole, um pária deslocado de uma sociedade que se orgulhava de sua recente modernização. A presença do Nordeste (e sobretudo do sertão) nos quadrinhos brasileiros é, portanto, quase tão antiga quanto a literatura. Mas trata-se de mídia escassa em termos de análises bibliográficas, ao contrário da tradição da crítica literária brasileira. Mesmo o capital intelectual da crítica de arte, que formou painéis diversos sobre artes visuais, cinema, teatro, fotografia, etc, ignorou — deliberadamente ou não — o meio das histórias em quadrinhos. Parte disso deve-se à disputa ideológica na academia, que considerou por muito tempo as HQs como um produto de massa “inferior”, conferindo uma posição subalterna dentro de uma perspectiva intelectual e acadêmica.

As HQs, com sua linguagem tão particular, adiciona novas camadas de significado sobre o imaginário nordestino.

Foi o cangaço o principal repositório do imaginário sertanejo na imprensa brasileira, como atestam as charges em revistas ilustradas como O Malho e Fon-Fon, entre 1907 e 1935. Uma charge de 1907 mostrava o assalto do cangaceiro Antonio Silvino à Mesa de Rendas (instituição relacionada ao Fisco da época), em Barra de São Miguel (AL), cujo saque deixou os funcionários nus. Silvino apareceria como um dos principais personagens das charges, sendo constantemente romantizado como um bandoleiro mítico que desafiava até mesmo o governador de Pernambuco, Dantas Barreto, diversas vezes pressionado e ridicularizado. Outros temas que entravam no bojo dessas charges eram a seca, a mortalidade, as migrações e, mais tarde, as andanças de Lampião e seu bando.

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Charge em O Malho (1930): novas camadas de significado nesse intrincado jogo de relações de poder e construção de imaginários

Um dos primeiros registros de uma história em quadrinhos completa surge em 1938, Vida de Lampeão, do pernambucano Euclides Santos, publicadas entre agosto e dezembro de 1938 na Noite Illustrada (suplemento do jornal carioca A Noite). A biografia de Virgulino Ferreira dos Santos é apresentada desde a infância, passando pela vida adulta, quando torna-se um cangaceiro famoso em todo o Brasil, até sua morte na Grota de Angicos, em Poço Redondo, Sergipe. O autor decidiu dividir a obra em 20 capítulos e consegue, ainda que timidamente, tentar entender a figura complexa que foi Lampião. O cangaço como um todo teve sua narrativa dominada pela mídia sulista, que colocava seus membros dentro de uma espécie de “banditismo social” — guerreiros que pareciam surgir como produtos de uma terra sem lei, ainda que diversos autores já desconstruíssem essa ideia pelo menos desde os anos 1940.

O cinema se apoiou muito nesse cangaço romantizado e ainda fez a lambança conceitual de unir o faroeste norte-americano com os cangaceiros. O maior hit desse bangue-bangue sertanejo talvez seja O Cangaceiro, de Lima Barreto, de 1953, mas diversas outras obras surgem pelo menos até os anos 1970, o que fez pesquisadores cunharem o termo “nordestern”. Os quadrinhos pegaram carona nessa proposta e usaram as histórias do cangaço como uma tentativa de encontrar um tom nacionalista para a incipiente indústria de HQs brasileira. José Lanzelloti lançou Raimundo, o cangaceiro no mesmo ano do filme de Barreto; uma obra bem realista no traço, ainda que totalmente desconectada da realidade, com diversas imprecisões históricas que iam de roupas e armas até o fato dos cangaceiros andarem a cavalo pela caatinga (o que não acontecia). Jerônimo, herói do sertão, escrita por Moises Whiltman, que também assinava os roteiros de uma novela de rádio de mesmo nome, fez ainda mais sucesso com a mesma ideia e trazia desenhos de Edmundo Rodrigues e Flavio Colin.

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Henfil: Nordeste como veículo de contradições do Brasil. (Reprodução).

Juvêncio, o justiceiro do sertão (1957), criado pelo jornalista Reinaldo Santos, foi outro personagem que surgiu no hibridismo do sertão com as histórias de faroeste. Baseado em uma famosa radionovela do período, o gibi do herói foi lançado pela Editora Prelúdio e teve como roteiristas nomes como Gedeone Malagola, Helena Fonseca, R. F. Lucchetti e Fred Jorge. Entre seus desenhistas estavam Sérgio Lima, Rodolfo Zalla, Eugênio Colonnese e Edmundo Rodrigues. Vale ainda citar Cangaceiros, de André LeBlanc, que saiu na Edição Maravilhosa em 1954; a obra que adaptava o clássico de mesmo nome de José Lins do Rêgo.

Regionalismo também casa com realismo

O pernambucano Jô Oliveira sempre usou o imaginário do Nordeste como motor criativo de suas histórias. Entre os anos 1960 e 1970, ele iniciou uma rica produção de quadrinhos e ilustrações que ia de encontro às produções simplistas sobre a região (tanto nos quadrinhos quanto em outras artes). Seu estilo se utiliza da estética do cordel e de diversas referências nordestinas, em uma narrativa que encontra diálogo com os trabalhos de Ariano Suassuna e o movimento armorial, sobretudo no amálgama de mitos europeus à cultura popular — como a cavalgada, caboclinho e bumba-meu-boi.

Seu trabalho é baseado em pesquisas e, por isso, parte desse desejo de compreensão ao mesmo tempo em que evoca imagens facilmente reconhecíveis do Nordeste. A Guerra do Reino Divino saiu primeiro na Itália, em 1975, assim como L’Uomo di Canudos (1979), ainda inédita por aqui.

A presença de Oliveira no exterior, atuando em revistas como Corto Maltese, ajudou a levar o imaginário do sertão para o mercado de quadrinhos internacional. Em 1981, o quadrinista italiano Hugo Pratt publicou L’uomo del sertao, uma trama passada no Nordeste brasileiro, estrelada pelos cangaceiros Gringo e Capitão Corisco e com misturas de referências que vão do candomblé às lutas políticas na região; tudo em um tom de aventura e erotismo que aproxima a obra do gênero western nos quadrinhos.

O belga Hermann também dedicou uma obra ao sertão brasileiro em Caatinga, uma HQ com um trabalho bastante detalhado e feito todo em cores, onde é possível ver paisagens bem realistas do território sertanejo. O quadrinista retrata os cangaceiros como revolucionários em uma trama que explora a questão do latifúndio e da concentração de terras. A editora Globo lançou uma versão da obra no Brasil em 1998.

O que se constata é que os quadrinhos experimentaram, já nos anos 1970, uma desconstrução do imaginário do sertão que o cinema iria explorar apenas em meados dos anos 1990.

Nordeste, espaço de debate

Nos anos 1970 e 1980, Henfil fez muito sucesso com seus personagens Graúna, Zeferino e Bode Orelana, que traziam o sertão como pano de fundo para fazer crítica social em plena ditadura militar. Com um traço minimalista e inovador (“anti-Disney”, como chegou a batizar), as HQs faziam um panorama do Brasil usando o Nordeste como veículo de contradições do Brasil do período.

Os personagens da série servem como sátira para arquétipos presentes na sociedade brasileira do período, a exemplo da Graúna, uma ave escura típica do Nordeste que representa uma mulher de classe média, e o bode Orelana, que come livros — paródia de uma classe média intelectualizada, porém inerte. Já o Capitão Zeferino é um típico cangaceiro cabra-macho valente. Henfil deixa claro seu posicionamento anticapitalista e de resistência contra o governo militar, mas seu sertão ainda é aquele espaço da terra miserável, castigada do sol, das cabeças de gado, cactos, distante da complexidade do território.

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Bando de Dois, de Danilo Beyruth: nordeste pop e violento. (Divulgação).

Flavio Colin, nos anos 1990, é parte de uma linha de frente de autores brasileiros que lançam obras autorais baseadas em referências brasileiras. Ao contrário dos anos 1950, a proposta não era a de fazer uma ode nacionalista ou de adaptar clássicos, mas de explorar as possibilidades do imaginário de diversas regiões. Sua HQ Mulher Diaba no rastro de Lampião, escrita por Ataíde Braz é parte dessa premissa. Na trama, uma mulher atacada pelo bando de cangaceiros de Lampião faz um pacto demoníaco para se vingar dos seus agressores. A obra saiu pela editora Sampa e se destaca pelo desenho de Colin, que traz bastante influência de xilogravura, cordel, mas também dos traços do quadrinho europeu.

Wilson Vieira foi outro autor importante a trabalhar o tema. Sua obra Cangaceiros – homens de couro foi produzida ainda nos anos 1990, mas só conseguiu ser publicada em 2004 pela Cluq. Vieira se baseou em material de pesquisa iconográfica e de indumentária para contar os primeiros 22 anos de Virgulino Ferreira da Silva (o Lampião). A arte do álbum é de Eugenio Colonnese e a capa de Mozart Couto. 

A revista Maturi, do Rio Grande do Norte, teve papel importante nessa proposta de buscar outras representações nordestinas, com um corpo interessante de colaboradores como, entre outros, Mozart Couto. O período também foi repleto de produções independentes, que traziam um Nordeste mais realista; porém, grande parte das HQs tinham um didatismo muito marcante, com histórias engessadas, sem muito ritmo.

Ainda nos anos 1990, o quadrinista baiano Antonio Cedraz fez sucesso com sua série de quadrinhos infantis Turma do Xaxado. A obra buscava referências em diversos elementos do imaginário sertanejo, sobretudo as peças de couro e a paisagem da caatinga. Na trama, o menino Xaxado é neto de um cangaceiro que fez parte do bando de Lampião. Ele é acompanhado nas histórias pelos amigos Zé Pequeno, que tem como característica marcante a preguiça; Marieta, conhecida pela inteligência; e Capiba, que sonha em ser um cantor famoso. Há também muitos seres do folclore brasileiro, como o Saci, a Mula-Sem-Cabeça e a Caipora.

Os anos 2000 trouxeram uma retomada da inspiração do imaginário do sertão nas HQs brasileiras, com diversas obras, grande parte delas adaptações literárias. Destacam-se, entre outras, Estórias Gerais (2001), de Wellington Srbek e Flavio Colin e Bando de Dois (2010), de Danilo Beyruth, além de Morte e Vida Severina (2010), de Miguel; O Quinze (2012), de Shiko (adaptação do romance de Rachel de Queiroz); Vidas secas (2015), de Guazzeli (adaptação do romance de Graciliano Ramos); O Cabeleira (2008), de Allan Alex, Leandro Assis e Hiroshi Maeda; e Grande Sertão Veredas (2016), de Guazzelli (adaptação do romance de Guimarães Rosa).

Estórias Gerais talvez seja a mais emblemática HQ a carregar essa proposta de deslocar o debate sobre o espaço nordestino e seus afetos. Srbek e Colin pensaram uma obra que desse conta da complexidade social do sertão, com sua relação cheia de nuances entre governo, igreja e sociedade. A história é dividida em seis capítulos, que trabalham com diversos temas relativos ao sertão, com destaque para o cangaço.

As HQs são situadas na fictícia cidade de Buritizal, localizada no norte de Minas Gerais, região que está inserida dentro do território do sertão, e se passam em 1920.  Coronéis, jagunços, disputas e cenas cotidianas sertanejas perpassam a história do temido cangaceiro Antônio Mortalma. Em 2021, a obra ganhou uma nova edição pela editora Conrad, em comemoração aos seus 20 anos.

Imaginário do nordeste
Bando de Dois: realismo e desconstrução do sertão. (Divulgação)

Bando de Dois, com roteiro e desenhos de Danilo Beyruth, é um remix de imaginário do sertão com referências pop, como assombrações e zumbis. A influência do faroeste spaghetti de Sergio Leone e Sergio Solima é evidente, bem como do norte-americano Clint Eastwood. O desenho é bastante ligado ao realismo de ação norte-americano, de Alex Toth e companhia.

Bando de Dois surge no mercado brasileiro em um momento de transição, quando grande parte da produção autoral passa a ganhar destaque nas livrarias, dividindo espaço com outras produções do mercado editorial. Depois dela, outras obras começaram a chegar, tendo como proposta trabalhar aspectos do Nordeste. A obra ganhou uma reedição em cores pela editora Zarabatana, fruto de uma campanha de financiamento coletivo no Catarse.

Tô Miró (2012), organizada por Raoni Assis, parte da obra do poeta pernambucano Miró da Muribeca para dar conta da complexidade do Recife e da relação das pessoas com a metrópole. Christiano Mascaro, um dos autores mais conhecidos da revista Ragú, também registrou essas contradições da paisagem urbana com seus meninos de rua gigantes, uma história que ainda ressoa poderosa e que saiu na Ragu 6 (2004).

Também refletindo sobre essa metrópole tão rica de histórias humanas temos os vários zines de Rogi Silva, que baseou suas narrativas a partir de suas vivências na periferia do Recife em obras como Aterro e Mergulhão (ambas de 2018).

O sertão, no entanto, segue como repositório importante das HQs do Nordeste. Cangaço Overdrive (2018), de Zé Wellington, Walter Geovani e Luiz Carlos Freitas, se vale da estética cyberpunk em uma HQ de ação e ficção científica que mistura experimentos tecnológicos com cangaço, ambientados no Ceará do futuro. Também futurista vale citar Pindorama, de Erick Volgo e Lehi Henri, um gibi que se passa em uma Recife semi-submersa e que traz uma travesti cangaceira.

O lugar do Nordeste já foi muitas vezes deslocado, reconstruído, estereotipado, celebrado, criticado, ignorado, valorizado. E as HQs, com sua linguagem própria, contribuíram desde sempre para esse debate. Ler essas obras, por tanto tempo ignoradas dos estudos sobre a cultura brasileira, permite reconhecer novas camadas de significado nesse intrincado jogo de relações de poder e construção de imaginários.

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