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Coletivo Marmitas da Terra distribui refeições no centro de Curitiba: se na obra de Josué de Castro a fome se destacava no campo, hoje ela é sobretudo urbana. (Foto: Coletivo Marmitas da Terra/Divulgação).

Geografia da Fome: o resgate da obra de Josué de Castro hoje para a (re)construção do Brasil de amanhã

Situação do país atual, com mais de 60% da população brasileira em algum nível de fome, reacende de forma trágica o debate proposto pelo geógrafo mais de 75 anos atrás

Quando o clássico Geografia da Fome, de Josué de Castro, foi publicado, em 1946, poucas eram as discussões e investigações em curso sobre o flagelo da fome e, mesmo quando abordado, suas origens eram unicamente atreladas a condições climáticas e biológicas – nunca a determinantes econômicos e sociais. “Quais são as causas ocultas dessa verdadeira conspiração de silêncio em torno da fome?”, indagou o médico e geógrafo recifense no prefácio à primeira edição da obra.

Ao propor uma abordagem multidisciplinar sobre o problema, Josué foi capaz de denunciar a fome enquanto fenômeno coletivo. “Ele mostrou que a fome era uma produção dos homens, da forma de apropriação dos recursos da natureza e dos recursos da produção. Então, ele desnaturalizou a fome. A fome não é um fenômeno natural, é um fenômeno socialmente produzido”, explica José Arlindo Soares, sociólogo e atual presidente do Centro de Estudos e Pesquisas Josué de Castro, no Recife.

Se, em 2014, o Brasil conseguiu, ainda que por pouco tempo, sair do Mapa da Fome da ONU, é porque o trabalho do geógrafo influiu, até a recente década, nas políticas públicas comprometidas com o enfrentamento do problema. Hoje, porém, passados mais de 70 anos da publicação da sua obra, o país volta a figurar no Mapa e o debate proposto por Josué permanece tragicamente atual.

Só no início do ano passado, 125,2 milhões de brasileiros e brasileiras – o que equivale a mais da metade da população do país – relatavam não saber se teriam o que comer no futuro próximo, situação traduzida como insegurança alimentar (IA). Esse dado assustador foi revelado pelo II Inquérito de Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 (II VIGISAN), conduzido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan).

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Nova edição de Geografia da Fome, pela Todavia, com arte de capa de Cristina Gu. (Foto: Divulgação).

Mas a Covid-19, por si só, não dá conta de explicar essa crise humanitária na qual o país hoje afunda. “A pandemia recrudesceu algo que já vinha acontecendo”, destaca o sociólogo Renato Carvalheira, vice-coordenador da Rede Penssan. “Os governos passados, tanto o Temer, quanto o Bolsonaro, encaravam muito o alimento como mercadoria, apenas e tão somente, e não do ponto de vista que a gente encara, que é do Direito Humano à Alimentação Adequada”, completa.

Para a economista e cientista social Tania Bacelar, o desmonte, levado a cabo nos últimos anos, das políticas de combate à fome é o elemento de maior poder explicativo desse cenário. “Simbólico destes tempos foi a extinção do Consea”, comenta. O órgão ao qual ela se refere é o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, de caráter consultivo, responsável por assessorar o Poder Executivo federal no combate à fome. Extinto por Bolsonaro, em 2019, o Consea foi há pouco tempo recriado pelo novo governo Lula.

É nesse cenário de terra arrasada que nos encontramos hoje, onde a trágica marca de 33,1 milhões de pessoas passando fome – expressão mais grave da IA – é nada mais do que aquilo que o geógrafo já identificara lá atrás: fruto de escolhas políticas. Revisitar e difundir sua obra, Geografia da fome – O dilema brasileiro: pão ou aço, é tarefa urgente para quem quer entender o Brasil atual. Até então raridade em livrarias, bibliotecas e sebos, o título voltou, no final do ano passado, ao mercado editorial brasileiro, com reedição pela Todavia.

As novas faces da fome

Dos tempos em que os primeiros exemplares foram publicados até os dias atuais, o país passou por várias transformações. Ainda que a matriz das desigualdades permaneça a mesma, somam-se agora novos contornos. Se em Geografia da Fome, Josué de Castro não chegou a explorar tão a fundo a fome urbana, até porque sua face, nos anos 1940, era majoritariamente rural, hoje o cenário mudou e a tragédia também tomou conta das cidades. “Passou a ser urbana e penetrou fortemente na classe média”, alerta Carvalheira. Ele chama a atenção para o fato de que a situação vai se instalando de forma gradativa, “com alterações do padrão. Então, se a pessoa comprava iogurte, [agora] não compra; se comprava carne, [agora] não compra ou substitui por ovo”.

Apesar disso, conforme demonstra o II VIGISAN, enquanto os centros urbanos concentram, em termos absolutos, o maior contingente de famintos (cerca de 27 milhões), os números percentuais da fome no campo superam o da cidade. Essa situação paradoxal, onde quem produz comida não tem o que comer, pode ser explicada, segundo Carvalheira, pela falta de apoio e “desmantelamento” das políticas de assistência e de crédito aos pequenos agricultores nos tempos recentes.

“É a fome oculta que o Josué de Castro falava. Essa fome de falta séria de nutrientes, uma fome que a gente não percebe. Parece que a população está gordinha, está bem alimentada, mas de fato não come frutas o suficiente, não tem os seus nutrientes, verduras, legumes, carne, nem proteína, muitas vezes.”

Renato Carvalheira, vice-coordenador da Rede Penssan.

Desassistência essa que justifica, em parte, a alta no preço de alimentos como arroz e feijão. Mas, paralelamente, a indústria vem conseguindo ofertar alimentos processados e ultraprocessados a preços cada vez mais baratos, o que escancara, segundo o vice-coordenador da Rede Penssan, outra face do problema: “É a fome oculta que o Josué de Castro falava. Essa fome de falta séria de nutrientes, uma fome que a gente não percebe. Parece que a população está gordinha, está bem alimentada, mas de fato não come frutas o suficiente, não tem os seus nutrientes, verduras, legumes, carne, nem proteína, muitas vezes.”

Abismos regionais

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Josué de Castro em conferência, realizada em João Pessoa (PB), sobre a situação econômica e social do Nordeste. Foto: Reprodução do livro Perfis Parlamentares: Josué de Castro (Câmara dos Deputados, 2007).

Antes predominante no Norte e no Nordeste do país, o flagelo também adentrou os grandes centros do Sudeste – região caracterizada nos anos 1940, por Castro, como de “subnutrição”. Contudo, os desníveis regionais, aspecto recorrentemente trabalhado pelo geógrafo, ainda permanecem e agora ganham novos contornos. “Essa é uma questão que os modelos até agora não conseguiram reverter, então a desigualdade continua. Mas não é aquela desigualdade de ausência quase absoluta [de infraestrutura]”, pontua Soares.

De acordo com Bacelar, a perpetuação desse hiato regional ainda se deve à lógica do modelo de desenvolvimento nacional – bem como denunciava Castro. “[Mas] do ponto de vista econômico há mudanças em curso. O Nordeste, por exemplo, interrompeu a trajetória de perda de posição relativa na economia nacional nas décadas recentes, viu sua rede de cidades medias se estruturar no interior da região, captando e sendo impulsionada pela interiorização do Ensino Superior, entre outras mudanças”, detalha.

Isso explica, segundo a economista e ex-diretora de planejamento regional da Sudene, a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, o fato de as secas hoje não mais provocarem o drama social, o intenso êxodo rural e a fome aguda tão presentes no Nordeste dos séculos XIX e XX. “Fome aguda denunciada por Josué de Castro em seus estudos, em contraste com a fome crônica, ambas tendo em comum o latifúndio, mas organizado em bases sociais distintas e em territórios também distintos.”

A fome e o agro

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Josué de Castro discursa a favor da desapropriação por interesse social das terras do Engenho Galileia, em Vitória de Santo Antão (PE). À esquerda, Francisco Julião. Foto: Reprodução do livro Perfis Parlamentares: Josué de Castro (Câmara dos Deputados, 2007).

Enquanto mais da metade da população brasileira convive com a incerteza sobre o que vai comer (ou se vai comer) amanhã, o agronegócio, a cada safra, atinge novos recordes de produção. À primeira vista, o cenário pode parecer contraditório, mas 77 anos antes, Josué de Castro, forte defensor da Reforma Agrária, já denunciava a relação direta da fome com o latifúndio monocultor voltado ao mercado externo.

“Ao lado do secular bloqueio da estrutura fundiária, as políticas públicas tenderam a priorizar o apoio ao agronegócio exportador”, afirma Tania Bacelar ao atualizar o debate para os tempos atuais. Em contrapartida, a agricultura familiar, responsável por produzir a maioria dos alimentos saudáveis e in natura que chegam à mesa dos brasileiros, não tem recebido a mesma prioridade nos anos recentes.

Ela garante que a fome no Brasil não resulta da incapacidade de gerar oferta, mas de gerar demanda. É que a concentração de riqueza nacional deixa uma grande parcela da população à míngua, sem acesso aos alimentos. “A renda muito concentrada, os baixos níveis de remuneração da ampla maioria (num país onde a educação não consegue ser priorizada para melhorar a qualificação das pessoas), os padrões produtivos da agricultura familiar (que terminam resultando em preços mais elevados que os dos alimentos processados) estão entre os fatores que podem ajudar a compreender este mistério brasileiro: potência alimentar no mapa da fome.”

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Josué de Castro foi presidente da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) e deputado federal por Pernambuco em duas legislaturas. (Foto: Divulgação/Todavia).

De agora em diante

“Pessoas que não comem estão impedidas de projetar qualquer futuro, pois sua existência fica aprisionada no presente, na pura imediatidade, na dor lancinante da fome. E a fome não espera; com fome não há ‘esperançar’. Por isso, um país que queira ser desenvolvido, que queira projetar o futuro, que queira romper com as amarras do colonialismo, tem nas políticas de combate à fome e nos projetos de produção e de distribuição de alimentos saudáveis a toda a população uma de suas máximas prioridades.”

O trecho acima, retirado do prefácio à nova edição de Geografia da Fome, foi escrito pelo advogado e filósofo Silvio Almeida, hoje ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil. Se nos últimos tempos muito se falou em destruição e retrocesso, hoje o discurso pareceu retomar algum otimismo com a perspectiva de reconstrução do país, após as últimas eleições. E resgatar a indignação de Josué de Castro é essencial se quisermos, efetivamente, trazer o combate à fome de volta ao centro da agenda política brasileira.

A trajetória do país já nos mostrou que, com vontade política, o fenômeno da fome coletiva pode ser superado. Mas hoje, para além de reerguer o que foi destruído, é preciso ampliar os horizontes. “Aprender com os caminhos construídos, revisitar as iniciativas implementadas e ousar avançar em suas insuficiências ou corrigir seus equívocos é o que se espera hoje, sobretudo porque todos os estudos confirmam a cada dia o potencial do Brasil para ampliar seu peso como um dos principais produtores e fornecedores de alimentos do mundo”, avalia Bacelar.

“Hoje o importante é voltar a mapear os desafios para a pequena produção familiar”, defende o sociólogo José Arlindo Soares. Ele destaca que isso deve ser feito em articulação com a retomada do aumento real do salário mínimo, de políticas de transferência de renda – como o Bolsa Família –, da volta do crescimento econômico e do fortalecimento do associativismo entre os pequenos produtores. Até mesmo a merenda escolar, por meio da aquisição de alimentos da agricultura familiar, iniciativa enfraquecida durante o governo passado, desempenha um papel importante.

O também sociólogo Renato Carvalheira aponta um caminho similar. “Embora seja tudo isso junto e mais. Aposentadoria também influi na questão da fome, se você tem pleno emprego ou não. Tem a questão econômica, social, de saúde, tudo isso”. Segundo ele, a educação exerce um papel essencial, pois o aumento do nível de escolaridade costuma quebrar o ciclo de pobreza nas famílias. “A pobreza é uma irmã siamesa da fome, embora não sejam fenômenos iguais”, analisa.

Os caminhos para a superação da fome, portanto, não são simples. Não existem atalhos. Quando Josué escreveu que “nada existe de específico contra a fome, nenhuma panaceia que possa curar esse mal como se fosse uma doença de causa definida” não foi à toa. Ele já nos adiantava que, assim como seu estudo engloba várias áreas do conhecimento, o enfrentamento a esse flagelo deve envolver a articulação de múltiplas frentes. O resgate da obra do recifense hoje é imperativo para entender o Brasil do passado e do presente e trilhar os rumos de um futuro mais acolhedor e menos desigual, onde toda a população durma com a certeza de ter o que comer todos os dias.