Czar Acidental, a vida e as mentiras de Vladimir Putin
Andrew S. Weiss e Brian “Box” Brown
Conrad, 272 páginas, R$ 89,90, 2023
Tradução de Mario Barroso
O presidente da Federação Russa Vladimir Putin não é flor que se cheire. Este é o mote da HQ Czar Acidental, a vida e as mentiras de Vladimir Putin, um lançamento da Conrad, escrito por Andrew S. Weiss, um ex-consultor da Casa Branca sobre assuntos envolvendo o maior país em área territorial do planeta e o ilustrador e quadrinista Brian “Box” Brown, cujo currículo inclui trabalhos notáveis como Cannabis: a ilegalização da maconha nos Estados Unidos e um best-seller pelo New York Times André, O Gigante: vida e lenda, e um Prêmio Eisner.
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Com a guerra entre Rússia e Ucrânia há meses ocupando o noticiário internacional, a HQ de Weiss e Brown invariavelmente chama a atenção. Daí não ser surpreendente encontrarmos na contracapa do livro frases efusivas de colunistas renomados, especialistas em ciência política e até da ex-Secretária de Estado dos EUA Madeleine K. Albright que recomenda a leitura do trabalho para quem “está disposto a entender melhor as forças que moldam a Rússia moderna e abalam o nosso mundo”.
Realmente, Czar Acidental traça com precisão a trajetória de Putin cujo percurso não deixa de ser assombroso. Durante anos, ainda no período soviético, ele foi apenas um oficial mediano da KGB, mas graças a uma série de acontecimentos oportunos, ele acabou se tornando um líder poderoso. Com o fim do regime soviético sua ascensão política se deu no rastro do processo de mudanças marcado pela transformação da Rússia em uma economia capitalista e o crescimento da corrupção e da criminalidade.
Após a renúncia de Boris Yeltsin, em 1999, Putin chegou à presidência, e desde então vem alternando sua posição no governo, ora como presidente eleito, ora como primeiro-ministro. Em mais de 20 anos de poder, enfrentou protestos, no entanto, conseguiu superar todas as crises, tanto eliminando os opositores, quanto assumindo posições moralistas e conservadoras.
Sua atuação tem contornos que mesclam nacionalismo, métodos repressores da era soviética e uma postura que lembra os tempos do czarismo. Putin cultiva a imagem de “macho forte” (basta lembrar suas fotos sem camisas mostrando o tórax) e tenta passar, ao mesmo tempo, uma imagem de “antifascista” e antiamericano. Mostra-se como defensor do povo russo contra a “decadência dos costumes ocidentais”, daí sua perseguição à comunidade LGBTQIA+.
Weiss é um conhecedor da cultura e da história russa e, nesse sentido, Czar Acidental é muito bem estruturada, pois contextualiza os acontecimentos narrados, revendo não apenas aspectos da vida política do país, mas também costurando os episódios que marcaram os passos de Putin com os fatos que o cercavam na época, como a queda do muro de Berlim, o período da Perestroika e o fim da União Soviética. Por sua proximidade com a presidência dos Estados Unidos, Weiss também domina com fluidez os acontecimentos contemporâneos.
Mas é aí que começam os problemas da HQ. A obra tem uma linguagem clara, acessível, os desenhos de Brown são cativantes, e poderia ser ainda melhor se Weiss não pisasse na bola diversas vezes na sua narrativa. Pela sua história de vida, de antemão, sabemos que estamos diante de um autor comprometido com uma visão estadunidense das relações entre a Rússia e os EUA. Contudo, ele poderia ter sido mais justo com algumas questões.
Uma delas é afirmar que a “KGB criou uma campanha discreta para disseminar “rumores” de que J. Edgar Hoover, diretor do FBI e o senador anticomunista Henry Scoop Jackson eram homossexuais enrustidos”. A KGB pode até ter ajudado a disseminar essa história, mas a homossexualidade de Hoover foi inclusive revelada ao público pelo pesquisador Anthony Summers no livro Official and Confidential: The secret life of J. Edgar Hoover, de 1993.
Outro trecho bastante questionável é o que trata do caso de Julian Assange. A forma como Weiss descreve o episódio mostra que ele não deve achar nada demais a espionagem feita pelo governo dos EUA revelada pelo WikiLeaks. Ao afirmar que “o governo russo bancou figuras marginais como Assange” porque o ativista disse que os Estados Unidos vinham tentando atrair a Ucrânia para a órbita ocidental, tirá-lo da esfera da influência russa e torná-lo membro da OTAN, não parece muito correto.
Na mesma linha de crítica gratuita, Weiss coloca um quadro com Putin dizendo que os russos e ucranianos são um só povo a uma figura identificada como o cineasta Oliver Stone, conhecido por questionar a forma como os EUA conduzem sua política externa, algo que o autor da HQ provavelmente não deve concordar.
Não bastasse isso no final da HQ, na legenda de um quadro que ocupa quase toda a página no qual vemos a figura de Putin sem camisa, empunhando um rifle montado sobre um cavalo (cópia de uma imagem fotográfica que circulou o mundo), está escrito: “Não se engane: sem sombra de dúvida, o mundo tem de lidar com um enorme problema chamado Rússia”. Ora, o problema não é a Rússia em si. Muitos cidadãos russos não apoiam Putin. O próprio Weiss apresenta isso em sua narrativa, a exemplo do grupo Pussy Riot, cuja perseguição perpetrada contra o grupo pelo Kremlin é mostrada em destaque.
A leitura de Czar Acidental, portanto, deve ser cuidadosa. Como disse na abertura do texto, Putin não é flor que se cheire, mas Reagan, Bush e Trump também não são rosas ou jasmins.
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