Não É a Israel Que Meus Pais Prometeram
Harvey Pekar (texto) e JT Waldman (arte)
Veneta, 176 páginas, R$ 74,90. Tradução de Cris Siqueira
O genocídio perpetrado pelo Estado de Israel sobre o povo palestino é mais um capítulo sangrento de uma história de séculos de conflitos étnicos, religiosos e econômicos, opressão, diásporas, perseguições, envolvendo, sobretudo, judeus e árabes, mas que também se espalhou pelo mundo arrastando europeus, americanos, africanos… e, pelo visto, está muito longe de ter um final pacífico. A HQ Não é a Israel que meus pais prometeram, obra póstuma do escritor judeu estadunidense Harvey Pekar em parceria com o quadrinista JT Waldman, lançamento da editora Veneta, é mais uma a tentar esclarecer a dimensão precisa de um dos maiores imbróglios da humanidade.
Mescla de autobiografia e da complexa história do povo judeu, Pekar, que se tornou conhecido pela série American Splendor, relata, a partir de sua própria vivência como filho de judeus poloneses que emigraram para os EUA, as questões com as quais foi se deparando e o levaram a se tornar uma voz dissidente no apoio irrestrito usual ao Estado de Israel. Junto com o desenhista, também judeu, JT Waldman, de forma lúcida e perspicaz, ele traça a sua transformação de jovem criado num ambiente onde o sionismo era a palavra de ordem para um crítico contundente de como Israel lida com os países islâmicos.
O longo processo de Pekar
Pekar deixa bem claro que, apesar de todas as agruras vividas pelo povo judeu no decorrer da história – do confinamento nos guetos das cidades cristãs na idade Média ao holocausto nazista –, não se justifica a posse de um território sob o pretexto de ser “a terra prometida por Deus” nem a opressão imposta ao povo palestino, que vive neste mesmo lugar há séculos.
Lendo Não é a Israel que meus pais prometeram percebemos, todavia, que a mudança de perspectiva do autor não foi um passe de mágica, mas fruto de um processo lento e sofrido, um caminho cheio de frustrações e controvérsias. Daí não ser surpresa ele encontrar seu lugar de expressão na cultura underground dos quadrinhos e da música – Pekar era um apaixonado do jazz e escrevia como jornalista freelancer sobre o tema desde a década de 1950. Inclusive, foi esse gênero musical que o aproximou do desenhista Robert Crumb, de quem se tornou grande amigo.
Nascido na cidade de Cleveland, Ohio, onde sempre viveu, Harvey Pekar trabalhou por anos como arquivista em um departamento de assistência médica aos veteranos de guerra e a carreira de escritor se iniciou a partir da sua amizade com Crumb com quem criou a revista American Splendor, cujo primeiro número surgiu em 1976. A revista teve 39 edições e foi publicada até 2008 com a colaboração de inúmeros quadrinistas como Alison Bechdel, Chester Brown, Alan Moore e Joyce Brabner, terceira esposa de Pekar e autora do posfácio de Não é a Israel…. O sucesso da série adveio sobretudo pelo caráter autobiográfico das histórias.
Pekar era um cronista da vida cotidiana e dos acontecimentos mundanos, sempre narrados com humor e ironia. A série ganhou uma adaptação para o cinema dirigida, em 2003, por Shari Springer, com o ator Paul Giamatti encarnando Pekar, que também faz aparições no filme. A obra venceu o Festival de Sundance e no Brasil ganhou o título de Anti-Herói Americano. Outras HQs conhecidas de Pekar lançadas no Brasil são Bob & Harv – Dois Anti-Heróis Americanos, em parceria com Robert Crumb, da Conrad Editora, e Os Beats (com arte de Trina Robbins, Ed Piskor e Peter Kuper), da editora Benvirá.
Contra os mitos
A publicação da primeira edição de Não é a Israel… nos EUA é de 2012, dois anos após a morte de Pekar aos 70 anos, por overdose de antidepressivos, pouco antes dele realizar um terceiro tratamento contra o câncer. O livro tem a marca inconfundível do autor realçada pela parceria com o ilustrador, quadrinista e design JT Waldman. Eles já tinham trabalhado juntos em 2007 em um ensaio ilustrado sobre o papel do povo judeu nos quadrinhos estadunidenses. Após esse trabalho, Pekar propôs a ele o projeto sobre sua vida e a história do povo judeu.
Seguindo o estilo que o consagrou, o livro é uma longa conversa de um dia entre Pekar e Waldman percorrendo um sebo e a biblioteca de Cleveland, onde o autor vai contando histórias de sua infância entremeadas com dados históricos sobre o judaísmo desde os tempos bíblicos. Apesar do tom didático da obra, é interessante observar como as conexões entre a vida pessoal e o fundo histórico vão compondo uma acurada reflexão que fundamenta os pontos de vista de Pekar e Waldman sobre os conflitos do Oriente Médio.
Graficamente esta mesma premissa é finamente trabalhada, revelando uma pesquisa visual e estética meticulosa. Se nos trechos históricos, Waldman reproduz murais mesopotâmicos, mosaicos gregos, caligrafia islâmica, arte bizantina, mapas medievais e cartazes soviéticos, em outros momentos ele compõe os quadros com elementos ilustrados que nos remetem diretamente ao universo pessoal de Pekar.
O tema de Não é a Israel que meus pais prometeram é, sem dúvida, áspero e inquietante, sobretudo agora diante da destruição da Faixa de Gaza pelo Estado de Israel e a morte de cerca de 50 mil palestinos. A leitura do livro hoje é bastante oportuna, pois mostra o quanto é difícil se opor ao senso comum, questionar narrativas e mitos, não sucumbir à forca do poder e da ignorância, ser chamado de traidor de uma causa e, mesmo assim, apesar dos momentos de perplexidade e do labirinto existencial que a história lhe impôs, constatar que Pekar permaneceu fiel à verdade dos fatos.
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