As imagens dos refugiados do Oriente Médio e África consternaram o mundo no início dos anos 2010, com o auge acontecendo por volta de 2015. Apesar de vivenciarmos a pior crise migratória nos últimos cem anos segundo a ONU, o fenômeno não é novo e envolve não só a Europa, mas o mundo todo (em nosso continente chama atenção a situação da Venezuela e países da América Central). As imagens que chegam até nós pelos noticiários, com pessoas morrendo afogadas no Mar Mediterrâneo ou socorridas em embarcações precárias chocaram o público. Ainda assim, é fácil se esconder sob o conforto das estatísticas e das notícias breves na TV em relação a esse problema. A Odisseia de Hakim, do quadrinista francês Fabien Toulmé, contorna em parte esse problema ao trazer em detalhes a história do jardineiro sírio Hakim, que realizou um périplo de seu país natal até a França ao lado do filho.
O drama real é contado de maneira sóbria por Toulmé, que ficou conhecido por suas histórias cheias de empatia como Não Era Você Que Eu Esperava (2017) e o ótimo Duas Vidas (2018), ambos lançados pela Nemo aqui no Brasil. O gibi se esquiva com maestria da velha problemática das obras em quadrinhos biográficas em que o artista explora um drama real para criar sua narrativa. Vimos isto em obras como Maus (Companhia das Letras), de Art Spielgeman e, mais recentemente em Grama (Pipoca e Nanquim), da sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim, onde o autor, no seu processo de escuta, acaba refletindo sobre os acontecimentos.
Toulmé começa como representante dessa plateia distanciada europeia, que vê os refugiados como uma massa única de pessoas para, em seguida, fazer o exercício de empatia de entender a complexidade da situação. Suas intervenções, ainda que frequentes ao longo da narrativa, não chegam a ser incômodas nem onipresentes. E são sempre respeitosas, tentando se ater fielmente ao que é dito.
Hakim decide sair da Síria após os protestos populares por mais liberdade que acabou dando origem à Guerra Civil Síria, que ainda está em andamento. Parte de uma família de classe média em Alepo, ele é um jardineiro de sucesso momentos antes do início dos conflitos. Com a situação cada vez mais perigosa na região, sua família decide imigrar inicialmente para a vizinha Jordânia, depois Turquia e, por fim, para a França. Ele acaba ficando na Síria com o filho pequeno, mas a situação cada vez mais violenta o força a seguir em uma viagem perigosa para reencontrar sua família (dar mais detalhes de sua jornada estraga um pouco a leitura).
A narrativa de Toulmé é bem sóbria e tem preocupações com detalhes e dados, o que a coloca muito mais próxima do jornalismo em quadrinhos. Ainda que não traga nenhuma inovação na linguagem, o autor consegue envolver o leitor sem pesar a mão na exploração da tragédia. Os episódios mais angustiantes e tristes emocionam sem que o autor abuse de recursos apelativos. O segundo volume é ainda mais interessante, com Toulmé explorando bem a paleta bicolor para ilustrar os diferentes momentos da saga de Hakim e seu filho.
Os quadrinhos têm explorado com afinco o drama dos refugiados e A Odisseia de Hakim traz uma interessante contribuição para essa leva atual de obras. No Brasil já saíram obras bem interessantes como Refugiados: A Última Fronteira, de Kave Evans (Darkside) e Goela Negra, de Lelis e Antoine Ozanan, entre outros.
A ODISSEIA DE HAKIM – VOL 1 – DA SÍRIA À TURQUIA
Fabian Toulmé
[Nemo, 272 páginas, R$ 64,90 / 2020]
Tradução de Fernando Scheibe
A ODISSEIA DE HAKIM – VOL 1 – DA SÍRIA À TURQUIA
Fabian Toulmé
[Nemo, 264 páginas, R$ 64,90 / 2020]
Tradução de Fernando Scheibe
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