Crítica-HQ: Grama e a memória viva do horror

Obra da sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim traz o relato da crueldade do exército japonês contra escravas sexuais na Segunda Guerra Mundial

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Crítica-HQ: Grama e a memória viva do horror
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GRAMA
De Keum Suk Gendry-Kim
[Pipoca e Nanquim, 488 páginas, R$ 79,90 / 2020]
Tradução de Jae HW

Em determinado ponto da HQ Grama, da sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim, a personagem principal Ok-Sun Lee, já em idade avançada, afirma que nunca conheceu a felicidade em toda a sua vida. Ela rememora uma trajetória repleta de abusos e violências que teve início na infância, quando foi vendida pela própria família, passando pela escravidão sexual nas mãos do exército japonês e uma vida de dureza na China após a Segunda Guerra Mundial.

Essa história triste foi retratado pelo olhar cuidadoso e cheio de empatia da coreana Gendry-Kim, mas a HQ respeita a dureza do relato e tenta se manter fiel às experiências vividas por Ok-Sun Lee. Isso faz de Grama uma leitura pesada que força o olhar para um dos momentos menos conhecidos do conflito global da Segunda Guerra, um passado que ainda hoje carece de uma reparação à altura.

Vamos ao contexto: no final dos anos 1930, o exército imperial japonês iniciou a Segunda Guerra Sino-Japonesa ao invadir a China e outros países do Leste da Ásia. Essa frente de batalha acabou fazendo parte dos acontecimentos ligados à Segunda Guerra Mundial, onde o Japão se aliou ao Eixo, ao lado de nazistas e fascistas. A escalada de horror desse cenário é chocante: os japoneses praticavam tiro com os prisioneiros, estupravam mulheres e crianças pequenas e enterravam pessoas vivas para economizar munição, entre outras atrocidades. Na cidade de Nanquim, na China, em uma das maiores tragédias do século 20, os nipônicos assassinaram cerca de 300 mil pessoas em seis semanas.

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Então uma colônia do Japão, a Coreia foi a parte mais afetada desse conflito, o que culminou com uma época de intensa pobreza e fome. Neste contexto, muitas mulheres acabaram sequestradas para servir de escravas sexuais nas chamadas “casas de conforto”, instalações mantidas pelo exército japonês em territórios ocupados. Muitas meninas eram enganadas por falsas ofertas de emprego ou eram vendidas por suas famílias como forma de sobreviver nesse tempo de penúria. Muitos pais também entregavam os filhos para “adoção”, um eufemismo para o abandono, que foi o caso da Ok-Sun Lee.

Prisioneira e escravizada próximo a uma base aérea, a garota era obrigada a satisfazer desejos de oficias japoneses na China ocupada. As meninas escravizadas viviam em condições precárias, em locais insalubres e não tinham como comprar roupas ou cuidar da higiene. Além dos estupros, elas também eram submetidas a terror psicológico, trabalhos forçados no campo e espancamentos. Em um dos momentos mais tristes do livro, uma amiga de Ok-sun engravida de um oficial e tem seu filho vendido pelos seus captores. Em outro, a protagonista adquire sífilis e fica impossibilitada de ter filhos após o tratamento. Com o fim da guerra, após a libertação, o sofrimento continuou, mas desta vez com o preconceito por parte dos familiares e da sociedade que não demorou a colocar na marginalidade as antigas “mulheres de conforto” (o termo, inclusive, é bastante controverso, mas foi utilizado na tradução do livro por ser amplamente utilizado na Coreia ao se referir às vítimas da escravidão sexual desse período).

A autora teve o cuidado em dar conta da dimensão humana do relato e por isso há o uso de elementos mais subjetivos que consigam expressar todos os sentimentos por trás daqueles acontecimentos. Não foi necessário, por exemplo, tornar ainda mais gráfico a crueza dos fatos, deixar explícito as cenas de crueldade, estupro. É a narrativa que carrega o peso daquele horror absoluto vivido por Ok-sun. As pausas e silêncios são preenchidas por belíssimos painéis pintados em nanquim que se estendem por várias páginas, como se desse tempo para o leitor absorver tudo aquilo que leu e processar tamanha dor. A cena em que a menina perde a virgindade é chocante e triste e também econômica nas palavras e nos desenhos. Usando os requadros para pontuar o clima de terror, o gibi conta essa violência extrema apenas manipulando luz e sombra em uma passagem cujo impacto perdura na mente por muito tempo. Essa subjetividade de buscar saídas criativas no desenho para dar vida às experiências do outro conecta Grama com outro relato poderoso da Segunda Guerra Mundial, Maus, de Art Spielgeman.

Também como Spielgeman, Gendry-kim é personagem da história e aparece como fio condutor das idas e vindas no tempo ao entrevistar Ok-sun Lee em um asilo para sobreviventes nos dias atuais. Ainda que o recurso seja bastante batido nos quadrinhos históricos como Maus e Grama, este livro acaba ganhando um componente novo nessas narrativas que é a oportunidade de discutir o tema a partir de uma perspectiva de gênero. Duas mulheres de gerações incrivelmente distintas trocando experiências.

Em determinado momento, a autora pergunta se teve algum soldado que ela amou ou gostou durante o tempo em que esteve na casa de conforto. “Eu já te disse, eram todos iguais. Isso não fazia diferença”, disse a vovó, momentos antes de relembrar que chegava a ser estuprada por 30 a 40 homens em um fim de semana. O gibi deixa claro que a situação das mulheres de conforto, mais do que apenas um crime de guerra, tinha um forte componente sexista e classista.

Outro diferencial de Grama é seu compromisso em ser um documento de denúncia. Ao contrário de outros episódios da Segunda Guerra, o conflito sino-japonês ainda carece de uma reparação justa, o que é fruto de muitas críticas ainda hoje. Sabendo disso, Gendry-Kim coloca pequenos trechos documentais na obra com um contexto histórico bem detalhado para situar o leitor. É feito de uma maneira muito pontual para que não atrapalhe a nossa imersão na narrativa da protagonista, mas igualmente poderoso.

A vovó Ok-sun tornou-se uma ativista a favor dos direitos das mulheres capturadas durante o conflito e segue participando de eventos ao redor do mundo para denunciar o o ocorrido (há diversos vídeos no YouTube com seus relatos).

Lançada na Coreia do Sul em 2017, Grama ganhou diversos prêmios e chamou atenção de sua autora como um dos nomes mais interessantes do quadrinho mundial atual. Com sua narrativa anti-guerra, Grama traz uma importante mensagem sobre a importância da memória dos sobreviventes e da reparação histórica. É um documento poderoso não só por trazer fatos ainda pouco difundidos sobre a Segunda Guerra Mundial, mas também sobre a história da violência contra a mulher.