Uma das potências e encanto do cinema é tornar concreto, aos nossos olhos, mundos possíveis. E não menos potente é quando ele nos mostra que somos capazes de resistir e mudar as coisas. Quando Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, em 2009, idealizaram o argumento inicial de Bacurau, o Brasil estava seguindo um rumo em que acreditávamos no fim da miséria, na redução dos abismos sociais, que finalmente as mulheres, os indígenas, os afrodescendentes, os LGBTI+ teriam cada vez mais seus direitos reconhecidos e que deixaríamos de ser capachos do imperialismo norte-americano.
Curiosamente e premonitoriamente, apesar de tantos avanços, eles provavelmente desconfiavam que o futuro continuava incerto e resolveram imaginar como seria, talvez, esse futuro.
2019. Bacurau estreia nas telas brasileiras depois de um début promissor no cenário internacional, conquistando o Prêmio Especial do Júri do Festival de Cannes. Quando Kleber Mendonça Filho, Juliano Dornelles e a equipe do filme atravessaram o tapete vermelho do Palais du Festival, em maio último, o Brasil já estava vendo os índices de miséria crescerem, os trabalhadores serem cada vez mais explorados e mulheres, indígenas, negros, lésbicas, gays e transgêneros começarem a perder o pouco que conquistaram.
E mais: o país voltando a ser entregue, a preço de banana, às empresas estrangeiras. Essa morte não estava anunciada, mas ela nunca deixou de pairar sobre nossas cabeças. Mendonça e Dornelles, como todos nós, descobriram que as forças sombrias do passado estavam de volta.
Bacurau, portanto, é um filme impressionante. Já nasceu com um destino traçado. Um futuro com cara de presente e um presente com cara de passado, desfiado em pouco mais de duas horas, onde a ficção até então imaginada, bateu na nossa porta vestida de realidade. A partir da história de uma comunidade longínqua, perdida no sertão nordestino, que subitamente tem o registro apagado dos mapas digitais, esboça-se sem nenhum arrodeio, uma trama de luta, fundada na crença poderosa da capacidade de reação de quem se dá conta que os seres humanos não são cabeças de gado e podem mudar o rumo da história contra a opressão e o descaso de quem acredita que seus poderes são ilimitados.
Uma obra mais que oportuna
Bacurau é um danado. É mistura de faroeste com ficção científica, de filme de suspense com filme de cangaceiro e ao mesmo tempo uma obra com identidade própria, uma identidade que vai além das referências a todos esses gêneros cinematográficos que são mostrados no decorrer da narrativa.
Mendonça e Dornelles, apoiados por um elenco de atuações marcantes (Sônia Braga e Udor Kier, mas também Barbara Colen) e por um roteiro que vai tecendo a trama com precisão milimétrica, usam as artimanhas das fórmulas dos filmes de gênero para falar de algo muito mais profundo: de como a solidariedade e a capacidade de unir forças são capazes de vencer as armas dos intolerantes e dos opressores.
O grande mérito de Bacurau é, portanto, demonstrar esse poder a partir da vivência de uma comunidade sem apelar para uma estrutura dramática coordenada por uma cartilha política panfletária, mas se valendo dos padrões e modelos engendrados pelos próprios gêneros com os quais o filme é construído.
Em suas primeiras sessões de pré-estreia pelo Brasil afora, Bacurau vem obtendo uma repercussão mais do que favorável. As filas que se formaram, no Recife, por exemplo, para a compra de ingressos antecipados, já demonstraram o interesse do público pelo filme. No momento, essa enorme expectativa é valiosíssima por pelo menos duas razões.
A primeira é o fato de uma obra do cinema brasileiro – que vem sendo vilipendiado e perseguido pelo “desgoverno” fascistóide, hoje, no poder federal – obter reconhecimento internacional e a promessa de se tornar sucesso de bilheteria, contribuindo para desconstruir a balela da pouca importância econômica do audiovisual nacional.
A segunda é o potencial que o filme tem, não de provocar uma revolução, mas de alcançar um público mais amplo, de ser uma obra que estabeleça uma comunicação mais estreita com a população em geral, sobretudo pela sua qualidade artística, evidente tanto na fotografia quanto no acabamento sonoro, de modo a comprovar que não é necessário se fazer concessões a um padrão estético simplório para conquistar o espectador.
Há alguns anos, fui convidado para um debate a ser realizado em praça pública no bairro de Tejipió, zona oeste do Recife. O filme exibido foi Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Quando recebi a proposta, a primeira coisa que me ocorreu foi se haveria um público significativo para assistir a um filme em preto e branco de um cineasta “difícil”.
No dia, para minha surpresa, a praça estava cheia de gente. Provavelmente aquelas duas, três centenas de pessoas nunca tinham sequer ouvido falar de Glauber Rocha. A exibição começou e o silêncio era total. A primeira explosão de aplausos a céu aberto ocorreu na cena onde o vaqueiro Manoel (Geraldo Del Rey) reage à violência do patrão explorador. Ao final, muitos aplausos e o debate que se seguiu foi um dos mais interessantes que já participei até hoje.
Não precisa dizer que estou torcendo para Bacurau despertar o mesmo sentimento entre os seus futuros espectadores e que eles (por que não sonhar?) não se contentem apenas em ver seus desejos projetados na tela.