Adeus a Kenneth Anger, pioneiro do cinema de vanguarda nos EUA, aos 96 anos

Gay assumido desde o início da carreira, sua obra foi uma das grandes influências da cultura underground dos anos 60 e 70

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Kenneth Anger em 2019. (Foto: Floria Sigismondi/Wikimedia Commons)

O cineasta e artista visual Kenneth Anger, um dos pioneiros do cinema underground norte-americano morreu nessa quarta (24), aos 96 anos. Sua obra, com cerca de 30 filmes, a maioria curtas metragens, é composta por trabalhos experimentais onde ele tratou de forma irreverente e iconoclasta temas que o fascinavam, sobretudo suas ideias sobre homoerotismo, ocultismo, violência e sobre o próprio cinema.

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Kenneth Anger foi o realizador e ator, em 1947, de Fireworks, o primeiro filme abertamente homoafetivo a circular em alguns cinemas pelos Estados Unidos. Apesar de impressionar pela ousadia das imagens e o toque surrealista da narrativa, o cineasta acabou sendo processado judicialmente por obscenidade pública, decisão revertida posteriormente, fato que abriu caminho para o reconhecimento legal da homossexualidade como expressão artística. 

Nos anos 1950, Kenneth Anger foi morar em Paris e trabalhou como assistente de Henri Langlois, um dos fundadores da Cinemateca Francesa. Nesse período aprofundou seu interesse por obras do cinema de vanguarda e se aproximou do cineasta francês Jean Cocteau. Seguidor do ocultista inglês Aleister Crowley, Anger se tornou um ícone da contracultura de viés ocultista da década de 1960 com seus experimentos visuais explorando desejos inconscientes e a mística por ele criada em torno de sua biografia. Muitos dos seus filmes misturam rituais satanistas com fetichismo, erotismo, cristianismo e até nazismo, como é o caso de Scorpio Rising, feito em 1964, o seu trabalho mais famoso. 

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Lucifer (Leslie Huggins) e Marianne Faithfull (Lillith) em cenas de Lucifer Rising (Reprodução).

A rebeldia libertária do cineasta, todavia, incomodava tanto autoridades – a polícia da Califórnia chegou a confiscar cópias de Scorpio Rising por considerá-lo pornográfico – quanto os nazistas, que denunciaram o filme por acharem que sua bandeira com a suástica estava sendo insultada. Como boa parte de suas produções, o filme não tem diálogos, mas é acompanhado por uma trilha sonora com grandes nomes da música pop da época.

Kenneth Anger moldou a estética queer

Durante toda sua carreira, Anger não se interessou em realizar filmes comerciais, mas seu trabalho teve admiradores como Andy Warhol, Mick Jagger e os cineastas John Waters, David Lynch e Martin Scorsese.  Para a galeria Spruth Magers, a quem o cineasta estava ligado, o artista foi um dos moldadores da estética das subculturas dos anos 1960 e 1970, do léxico visual do pop, dos videoclipes e da iconografia queer. 

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O clássico Scorpio Rising (1963).

Curiosamente, Anger também foi autor de um livro de fofocas em dois volumes que até hoje dá o que falar: Hollywood Babylon. Neles, Anger conta histórias escandalosas sobre a vida íntima de nomes famosos da indústria cinematográfica. A obra foi banida após o lançamento por ser baseada em relatos que Anger ouviu quando era criança ou em suas próprias lembranças, mas vagamente verificados. Dez anos depois, porém, ela foi relançada. 

Boa parte dos filmes de Kenneth Anger, incluindo Eaux d’Artifice (1953), The Inauguration of Pleasure Dome (1954), Invocation of My Demon Brother (1969), Lucifer Rising (1974), além dos citados na matéria, estão disponíveis no YouTube. Na plataforma também é possível ouvir a maravilhosa trilha de Scorpio Rising com pérolas como Fool Rush In, de Ricky Nelson e Blue Velvet, de Bobby Vinton.