Resenha: Kendrick Lamar e as bases para um novo rap em “DAMN.”

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Há um claro percurso narrativo nos discos de Kendrick Lamar lançados até aqui. DAMN., o mais recente, é o ápice desse processo e chega no momento em que Lamar se confirma como mais importante rapper no mundo hoje, inconteste.

Com good kid m.A.A.d city, Kendrick Lamar fez uma profunda e nostálgica reflexão sobre sua adolescência e passagem para a vida adulta. Trouxe à tona o cotidiano dos subúrbios violentos em Compton, Califórnia, e adicionou tantas camadas e facetas que deixou longe visões simplistas sobre pobreza, raça e juventude. Tudo apresentado de maneira bastante vulnerável, autobiográfica e cheia de referências a pessoas e locais de sua cidade natal. Um clássico rapper que é também um documento poderoso de um ponto de vista negligenciado – o jovem negro de periferia. Anos depois um longa com essa mesma perspectiva ganharia o Oscar de melhor filme: Moonlight, de Barry Jenkins.

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Em seu disco seguinte, Kendrick aumentou o tom em sua pretensão de fazer um percurso histórico-social do lugar dos negros na América. To Pimp A Butterfly é seu álbum mais político e um dos mais ousados esteticamente, não à toa ainda insuperável em sua carreira. Unindo elementos de jazz, rock e eletrônica ele levou seus chegados para uma foto em frente à Casa Branca, em Washington, o que por si só é um afrontamento estético e político bem forte. É preciso ocupar. Os temas nesse trabalho ocupam diversos aspectos do que significa ser negro nos EUA hoje e as saídas para um empoderamento. O álbum saiu em meio a um debate acalorado na mídia motivado pelas recorrentes mortes de pessoas negras por policiais brancos. O hit “Alright“, cujo refrão traz um tom misto de esperança e perseverança “we gon’ be alright (algo como “vamos ficar bem”), tornou-se um hino nos protestos do Black Lives Matter.

Kendrick chegou a lançar um disco “de sobras”, untitled unmastered., onde regravou rimas que apresentou ao vivo em premiações, aparições na TV e outros eventos. O sucesso do rapper e seu lugar hoje no hip hop mundial tem muito a ver com o modo com que responde a temas urgentes. Ao escolher se posicionar e fazer um testamento político em forma de música, Kendrick cresce em relevância em um momento em que o rap (e a música negra) chama para si a responsabilidade de tornar-se, mais uma vez, o som de transformação do pop.

Quando surgiu, em meados dos anos 1970, o rap era um som feito para divertir, pura e simplesmente. Nasceu de maneira abrupta, mas foi burilado por diversos DJs e produtores nos anos seguintes. Mas sua gênese tem a ver com a guerra de gangues nos subúrbios de Nova York e a construção de uma identidade negra e jovem que não dialogava com o hedonismo burguês das baladas disco no centro e bairros ricos novaiorquinos. Nos anos 1980, o gangsta rap da Califórnia, de grupos como NWA, fez explodir o gênero como uma música explosiva na sonoridade e sociopolítica em sua essência.

Kendrick Lamar é herdeiro dessa linhagem (e também de bandas inovadoras como o A Tribe Called Quest), mas sua proposta tem um conteúdo que conclama para uma construção coletiva, de pensar questões importantes, mas sem nunca deixar de lado rimas bastante pessoais. Enquanto grande parte dos rappers celebra a emancipação através da grana e poder, uma maneira provocativa, mas conservadora, de peitar o sistema, Kendrick incomoda mais ao dizer que todos resistirão juntos. Ele vai à mídia expor com sagacidade uma sociedade racista em vez de ostentar carros e correntes de ouro como sinônimo de ascensão social.

Então chegamos a DAMN., mais novo álbum de Kendrick Lamar. Lançado quase de surpresa e sem muita promoção, o trabalho lança novas bases para o rap enquanto movimento. Depois de falar de sua quebrada com emoção e de fazer um manifesto político, Kendrick se aprofunda em temas mais universais para pensar novos caminhos para o gênero. Minimalista na forma e no conteúdo, o disco chama novamente a responsabilidade para o potencial do hip hop como veículo de transformação. “HUMBLE.”, o primeiro single, traz um discurso contra a ostentação, a hiperssexualização feminina (“estou cansado pra caralho do Photoshop”) e conta com um clipe irônico e afiado no uso que faz das imagens – as cabeças pegando fogo, as miras das armas da polícia, as batalhas de rimas embaixo do viaduto. Em “LOYALTY.”, com participação de Rihanna, voltamos a ouvir o mesmo tema com a rima “é muito difícil ser humilde”.

Em “ELEMENT”, com participação de James Blake na produção, Kendrick chega com os dois pés na porta na crítica que faz aos rappers que são “ricos imaginários”, vangloriando-se por serem milionários, mas com pouco conteúdo. “DNA”, que tornou-se o segundo clipe do disco, é a faixa mais política desse disco que se pretende mais universal e atemporal. Sua crítica mira a injustiça social e os estereótipos que relacionam negros ao crime.

DAMN. traz diversas referências religiosas e elas servem, sobretudo, para que Kendrick faça uma reflexão pessoal sobre suas contradições. É o caso de “PRIDE”, onde ele levanta questões sobre as tensões entre orgulho e humildade em estar no topo do rap mundial. A cantora Anna Wise colabora novamente com Kendrick no refrão “Maybe I wasn’t there”. “XXX”, com participação do U2, traz referências bem diretas ao cristianismo como uma base moral para comentar temas políticos bem específicos dos dias atuais, como imigração e chegada de Donald Trump ao poder (“Nós perdemos Barack e prometemos não duvidar dele nunca mais”). Bono, no refrão, é bem direto para exemplificar a postura da maioria: “você fecha os olhos para olhar ao redor”.

DAMN. confirma Kendrick Lamar como a principal voz de um novo paradigma no hip hop. Sem a pretensão de um épico narrativo como To Pimp A Butterfly, este disco traz bases para um momento mais crítico do rap, cuja postura conclama o senso de comunidade que está na gênese do gênero. E faz isso com inovação na forma, usando aliterações, bases que fogem do lugar comum e samplers inusitados. É o mais seco e menos rebuscado de seus álbuns até aqui, uma estratégia para sua mensagem chegar ainda mais crua e contundente.

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