A arrebatadora beleza agridoce de The Wrong Place
Por Dandara Palankof
Colunista da Revista O Grito!
Um dos blogs que visito com certa freqüência é o do Allan Sieber, um dos quadrinistas brasileiros mais talentosos em atividade. Além de publicar alguns de seus trabalhos, Sieber também dá dicas sobre várias coisas, entre cinema, alguns eventos bacanas – fazendo ou não parte deles – e também, é claro, histórias em quadrinhos.
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Dia desses, circulando por lá, dei de cara com Sieber rasgando alguns elogios para uma graphic novel chamada The Wrong Place. A imagem da capa me fisgou de imediato. Uma belíssima aquarela, mostrando diversos personagens fantasiados, se misturando enquanto sobem uma escada.
“Parece que o Brecht Evens aprendeu isso com alienígenas”, dizia o quadrinista brasileiro. E era algo realmente absurdo. Fiquei olhando para aquela capa por um bom tempo. As cores fortes e as formas fluidas davam á imagem um tom fabuloso – no sentido literal da palavra; e a situação, até corriqueira, acaba cercada de um surrealismo intenso que há muito eu não via em um quadro de gibi.
Fui atrás de outras páginas do livro, pela internet, pra tentar descobrir quem, afinal de contas, era o autor – esse tal de Brecht Evens. Pois então. O tal é um belga, que publicou sua primeira história em quadrinhos em 2006 e hoje já tem trabalhos publicados tanto em sua terra natal quanto em países como Estados Unidos, França e Alemanha. Estudou ilustração na escola Sint-Lucas Gent. E que The Wrong Place, publicado nos EUA pela Drawn & Quarterly em 2010, não era tão desconhecido assim: Evens havia sido indicado para o grande Prêmio Eisner na categoria Melhor pintor ou artista multimídia.
É um conto sobre vazio interior, sobre solidão, angústia e superficialidade; mas também é um conto sobre liberdade, sobre leveza, sobre se permitir
(Apenas um breve parêntese pra dizer que só quando fui pesquisar sobre Evens, descobri que a Drawn & Quarterly tem em seu catálogo, atualmente, uma boa parte dos grandes autores independentes de quadrinhos dos últimos tempos: Daniel Clowes, Charles Burns, Guy Delisle, Joe Sacco e mais alguns desconhecidos cujos trabalhos parecem tão instigantes quanto os artistas citados. Dar uma olhada lá é uma ótima pedida pra quem quer dar uma variada na leitura.)
Pois bem. Achei algumas outras páginas e o que Evens fazia nelas, realmente, parecia coisa de outro mundo. Eye candy, pra dizer o mínimo. A sinopse dizia algo sobre uma festa e um convidado que não aparecia, um estudo sobre as relações contemporâneas e eu simplesmente não conseguia parar de admirar a precisão com que ele conseguia criar aqueles efeitos no papel. Ok. Toca pra Amazon.com.
Alguns tempo depois, livro em mãos e devorado em dois dias. E posso dizer que, sem dúvida, foi o melhor gibi que comprei até o momento, esse ano. Agora que prestei atenção na história: sim, é um conto sobre vazio interior, sobre solidão, angústia e superficialidade; mas também é um conto sobre liberdade, sobre leveza, sobre se permitir.
A tal festa que comentei lá atrás é promovida por Gary. A cadeira vazia, após todos os seus convidados finalmente chegarem, deveria pertencer à Robbie. Os dois são amigos de longa data. Mas são pólos completamente opostos. Gary, resumindo, é o estereótipo do loser – solitário, com uma vida que não sabe se lhe pertence e sem muito traquejo ou appeal social. Já Robbie é um bon vivant, belo, sedutor de todas as formas possíveis; e a única razão para que os outros personagens tenham se proposto a subir os cinco andares de escada para chegar ao apartamento de Gary é presença dele.
O que vemos em The Wrong Place, junto com Gary, Robbie, Naomi e outros coadjuvantes é um pequeno fragmento das vidas de jovens contemporâneos tentando preencher aquele buraco que todos temos dentro de nós. Da necessidade de contato e de afago: querer o outro, ou ver-se no outro; do querer ser o outro. Do desapego que leva a desfrutar abertamente o suspiro que pode ser o último. De não ter coragem para nada disso ou se permitir que o tal acaso possa lhe dar a chance de fazê-lo.
Sim, essa história já foi contada várias vezes e ainda será muitas outras. Mas o segredo é criar personagens palpáveis, reconhecíveis, mas com sua carga de mistério; que possamos descobrir uma fala por vez, que mostrem suas nuances à luz e que as sombras revelem as fagulhas do atrito entre eles. Evens é muito bem sucedido aqui, e a primeira página já é capaz de criar aquele familiar desconforto da distância no entendimento do outro.
Mas não tem jeito: é a arte do belga que torna The Wrong Place por vezes assustador na maestria do exercício da linguagem. Evens prescinde de requadros e de balões para contar a história e a sensação é de que tudo paira no ar. Combinado à sua técnica na aquarela, tudo toma um tom onírico – um sonho muito, muito estranho, mas perturbadoramente familiar. E algumas das situações são mesmo hiperbólicas como as de um sonho, retratadas com cores que apenas no mundo de Morfeus poderíamos encontrar.
O artista vai do rebuscamento ao minimalismo, criando quadros de página inteira impactantes ao ponto de arrancar suspiros; dessas que dão vontade de reproduzir pra colocar na parede. Sem contar a forma com a qual ele domina o espaço da página, brincando com as diversas maneiras de como podemos passar os olhos por elas, criando movimentos que se integram ao tom de cada momento da história. Destaque para a delicadeza, a fluidez e a plasticidade de uma das melhores cenas de sexo que já vi, seja na mídia que for. Um absurdo.
Tudo isso transforma essa graphic novel em uma experiência extremamente sensorial. É impossível não se sentir imerso naquele mundo estranho, de pessoas coloridas – ou descoloridas – por dentro e por fora. Muito menos não se lembrar da sensação de se sentir no lugar errado.
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* Dandara Palankof é a identidade secreta da Garota Sequencial. Diz que sua relação com quadrinhos é destino, já que aprendeu a ler com um gibi do Cebolinha. Nerd orgulhosa, marvete e editora do gibi Estranhos no Paraíso, publicado no Brasil pela HQM Editora.”