Queer
Luca Guadagnino
EUA, 2024. Drama, 2h15. Distribuição: Paris Filmes
Com Daniel Craig, Drew Starkey, Colin Bates
O impacto inicial que um filme nos provoca é um aspecto relevante quando decidimos escrever uma resenha crítica, pois é dessa primeira impressão impactante de onde vamos, em geral, extrair os principais elementos que conduzem e dão consistência e sustentação para a análise a ser realizada. E, mesmo que o choque seja muito forte, na maior parte das vezes, conseguimos um distanciamento da obra visualizada que garante uma isenção relativa nos comentários, reflexões e opiniões emitidas. Todavia, tem filmes em que isso não é possível. O abalo emocional pode ser tão intenso que a razão nem sempre será o guia do que diremos sobre o filme. E é exatamente isso que enfrentamos ao conhecermos Queer, o novo filme do cineasta italiano Luca Guadagnino que acaba de estrear nas salas brasileiras.
Queer é uma adaptação para as telas do romance homônimo de um dos expoentes da geração beat, William S. Burroughs. O escritor, apesar das controvérsias sobre a sua homossexualidade provocada por declarações feitas por ele próprio sobre o assunto, tem em Queer uma de suas obras mais viscerais sobre o amor entre homens. Nela, vamos conhecer Lee (Daniel Craig), um homem maduro, vivendo na cidade do México nos anos 1950, que passa o tempo livre circulando entre bares e inferninhos frequentados por estrangeiros e acaba se apaixonando obsessivamente por um jovem chamado Allerton (Drew Starkey).
O livro é uma extensão da novela Junkie, a obra mais conhecida de Burroughs, publicada em 1953, mas Queer, por conta da forte carga homoerótica, só ganhou uma primeira edição nos Estados Unidos em 1985.
O romance foi concebido num período conturbado da vida de Burroughs, enquanto ele esperava o julgamento pela morte acidental de sua esposa, vítima de uma bala disparada por ele em uma brincadeira de tiro ao copo, colocado na cabeça dela, quando ambos estavam sob o efeito de drogas. A base da trama do livro, segundo estudiosos da vida e obra do autor, seria inspirada na relação real do escritor com Lewis Marker, um militar reformado da marinha estadunidense que fez amizade com ele no México.
E é a atmosfera desse período, confuso e sombrio, da vida real de Burroughs que Guadagnino transporta para o filme de modo que não tenhamos dúvida que o personagem fictício Lee, era na verdade o próprio Burroughs, apesar de termos, como no livro, um narrador na terceira pessoa conduzindo a história.
Essa opção do diretor é fundamental para compreendermos a concepção do filme. Do roteiro a mise-en-scène, da caracterização das personagens aos arranjos visuais e a forma como a câmera se relaciona com o espaço onde as ações transcorrem e com as figuras em cena, o objetivo é o mesmo: fazer com que tenhamos a impressão de que o espírito de Burroughs paira na tela encarnado em Lee, vivido pelo ator Daniel Craig. Isso é sentido, principalmente, por Guadagnino nos propor atravessar o filme como se estivéssemos folheando um livro, reafirmando a origem da narrativa – o texto de Burroughs – e ao mesmo tempo nos convidar a acompanhar a sua leitura pessoal da obra.
Quem conhece a vida de Burroughs – e se identifica com ela – não passará ileso pelo Queer criado por Guadagnino. Sobretudo quem, de alguma forma, já trilhou o caminho dos amores obsessivos ou buscou em substâncias que abrem os portais da percepção experimentar dimensões desconhecidas. As imagens, sobretudo na primeira parte do filme, pela paleta de cores utilizada tem um quê de crepuscular. Elas delineiam personagens mergulhados num mundo fútil, de intrigas e mexericos, regados a mescal, uísque e drogas, cuja única finalidade é encontrar parceiros sexuais sem maiores compromissos e contar aos outros homens gays as estripulias eróticas e as conquistas bem-sucedidas ou fracassadas.
Lee parece ser mais um deles. Já nas primeiras cenas do filme é flagrado em gestos trôpegos de macho inseguro vagando pelas ruas sombrias de uma cidade boêmia, aspirando extasiado os humores dos corpos masculinos. O passeio acaba com ele em um quarto de hotel barato acompanhado por um jovem mestiço. O ciclo de encontros fortuitos, contudo é interrompido quando Lee descobre Allerton e fica desconcertado ao fixar seu olhar no rosto belo e indecifrável do rapaz e, em troca, receber um sorriso inescrutável. Dali em diante, só resta a Lee uma alternativa: chegar perto daquele corpo que exala o desejo de ser conquistado.
Em Me Chame pelo seu Nome, filme de 2017, Guadagnino já demonstrara a sua disposição em mostrar um relacionamento amoroso homoafetivo de forma aberta, explorando a alegria da descoberta de um desejo, as hesitações na sedução e na conquista e o gozo dos corpos que se entregam. No seu novo filme essa desenvoltura torna-se ainda mais intensa, mas, diferentemente da Toscana ensolarada e da jovialidade e leveza dos protagonistas, o homoerotismo de Queer é tortuoso, tenso e misterioso.
O jogo amoroso entre Allerton e Lee é incerto e desmesurado. Enquanto Lee deseja ter o rapaz sempre em seus braços, o jovem vai da entrega total ao seu amante – e do interesse em se divertir ouvindo as histórias estapafúrdias contadas por ele – a mais completa indiferença. No fundo a relação entre os dois é igual a tantas outras envolvendo homens com certa diferença de idade e vivências distintas. O diretor italiano, todavia, transmuta essa relação conturbada num painel de sentimentos no qual vamos percebendo a intrincada tessitura que se forma entre um mundo de emoções palpáveis de corpos que se atraem, mas que, ao mesmo tempo, vagueiam entre os fantasmas que cada um carrega, incluindo o medo e a crise de terem suas masculinidades questionadas.
Guadagnino nesse sentido, propositadamente, desconstrói o próprio Burroughs, o qual afirmou de forma categórica, anos depois do lançamento do livro, que não era gay. O cineasta, no entanto, não emite um juízo de valor sobre a personalidade controversa do escritor. Apenas mostra as contradições que ele carrega, muito bem expostas nos gestos e palavras do protagonista, reforçando que apesar desse viés bem questionável de Burroughs, ele ainda o admira.
Admiração, a qual compartilhamos, por Burroughs ter sido capaz de narrar e descrever de forma tão intensa um desejo que beira o delírio. Um amor cujas sensações despertadas ultrapassam os limites da pele, dos olhos e que se torna pleno nas alucinações de uma viagem lisérgica, o motor da segunda parte do filme, quando Lee e Allerton partem para a selva amazônica em busca de uma bebida mágica.
Um aspecto interessante a ser assinalado é como, apesar da história de Queer estar ambientada nos anos 1950 – algo que está muito bem desenhado pelo figurino e cenografia – Guadagnino o revestiu com elementos visuais e sonoros que transportam a trama para um tempo/espaço por vezes indeterminado. É como se a ação estivesse no passado, mas a emoção estivesse no agora. O uso de músicas do Nirvana ou do New Order, de uma luz claramente artificial, de efeitos de sobreposição nas imagens e de uma interpretação um pouco afetada aproximam Queer de uma estética maneirista.
O maneirismo do filme, no entanto, está muito longe de ser um defeito, pois é justamente por se distanciar do realismo que o filme nos envolve e nos encanta. A cada sequência somos convidados a trilhar os caminhos de Lee e seu amante e a se equilibrar nos abismos que relações intensas, mas desiguais, provocam, sendo seduzidos exatamente pelo que elas têm de onírico e belo, seja no êxtase ou na agonia.
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