Carlos Augusto era um garoto de 17 anos que gostava de filmes e de música. Frequentador assíduo das matinês, também não perdia show de calouros no Cine Caiçara que acontecia aos domingos. Até pensava um dia, quem sabe, subir no palco do cinema e cantar alguma música de Roberto Carlos de quem sabia de cor todas as canções. Quando ouvia a canção É Proibido Fumar que tocava bastante na Difusora, ele pulava da cadeira e cantava junto, tentando imitar todos os gestos do cantor. Esse desejo cresceu ainda mais quando viu o seu ídolo se apresentando no Cine Teatro Pax no final do ano anterior. Foi um dia inesquecível. No entanto, não foi só o show de Roberto Carlos que mexeu com sua vida. Na mesma noite, após o show, ele conheceu Manuel.
Manuel Ribeiro tinha 30 anos quando chegou em Mossoró em 1962. Ainda lembrava quando pegou o trem na cidade de Souza, sua terra natal, e desembarcou na movimentada estação com duas malas e uma grande vontade de mudar de vida. E deu certo, agora ele era funcionário do Departamento de Aviação Civil, ganhava bem e tinha muitos planos para o futuro. Só uma coisa o incomodava: a solidão. Mesmo dois anos após ter chegado, não tinha amigos, só os colegas do aeroporto. A maioria deles era casada e não se aproximava muito dele. Manuel era tímido e seu jeito delicado, pensava consigo mesmo, talvez os deixasse desconfiado. Para encher seu tempo livre nos sábados e domingos costumava passear pela margem do rio, ia ver jogos de futebol do Potiguar ou filmes no Pax, no Caiçara, no Rivoli, e no Cid, perto da catedral, o mais novo de todos e onde assistira O Candelabro Italiano.
Na noite do show de Roberto Carlos no Pax, permaneceu nas proximidades do cinema vendo a movimentação. Ficou olhando os grupos de rapazes e mocinhas alvoroçados que saiam do cine-teatro sorridentes e animados e num deles viu um rapaz que cativou sua atenção. Um pouco magro, de bigode ralo, olhos claros e com um sorriso charmoso, o moço tinha jeito de moleque brincalhão. Enquanto caminhavam, ele mexia com os amigos e fazia poses como se estivesse com um microfone nas mãos e cantarolava as músicas que acabara de ouvir no show. Mais adiante o grupo se dispersou e apenas o rapaz seguiu. Manuel com uma coragem que não sabia de onde tinha vindo, se aproximou do moço e perguntou se ele não queria comer um cachorro-quente com refresco ali perto. O rapaz parou desconfiado, mas como estava só e o homem tinha o ar de uma pessoa distinta e estava bem-vestido, decidiu dizer sim.
Manuel e Carlos comeram o cachorro-quente com refresco, foram até a praça próxima da lanchonete e ficaram conversando sobre o show de Roberto Carlos e sobre filmes. Apesar da diferença de idade, eles se entenderam muito bem, como se fossem velhos conhecidos. Trocaram um aperto de mão na hora da despedida, mas Manuel percebeu o olhar e o riso sedutor de Carlos enquanto o rapaz segurava sua mão. Combinaram então de assistirem um filme juntos no final de semana seguinte. Manuel voltou para casa, um apartamento perto do centro, transtornado. Cada detalhe do rosto do garoto ficara gravado nele. Já deitado, ficou remoendo o jeito manhoso de Carlos contar suas histórias, a imitação que fez de Roberto Carlos… e curioso, também, por conhecer mais sobre aquele ginasiano quase imberbe que dizia ser filho de uma família de classe média e sonhava em ser cantor.
A semana de Manuel foi a mais longa de sua existência. No DAC foi chamado a atenção várias vezes por estar distraído e não realizar as tarefas designadas a contento. Quando chegou o domingo seu coração passou o dia acelerado. No final da tarde começou a se arrumar e trocou de camisa umas dez vezes. Não sabia se ia com uma roupa formal ou algo mais descontraído para reduzir a sensação um pouco incômoda pela diferença de idade entre ele e o rapaz. Optou por uma camisa de corte moderno que julgou ser a mais adequada. Embora a sessão da noite do filme só tivesse início após a missa da catedral, às 18 horas Manuel já estava rondando o Cid, local acertado para ver o filme. Manuel temia que Carlos não cumprisse o prometido. Talvez ele fosse um jovem avoado e tivesse esquecido o acerto. Todavia, às 19 horas Carlos despontou na praça.
Quando viu Manuel, Carlos deu uma parada e olhou em volta para ver se tinha conhecidos. Tinha gostado de Manuel, mas temia que o fato de estar se encontrando com um homem mais velho e que não frequentava sua roda de amigos fosse motivo de fuxicos. Mas agora era tarde, Manuel já o tinha visto e se dirigia em sua direção sorridente. Carlos cumprimentou Manuel com uma certa reserva. Manuel percebeu e sua aflição só cresceu. A sessão de 007 Contra Goldfinger começava às oito. Ele comprou os ingressos e entraram na sala sem se falar. Quando o gongo bateu e as luzes se apagaram, Manuel sentiu um certo alívio, mas sua cabeça estava em ebulição. Quando sentiu a mão de Carlos roçar a sua, ficou paralisado. Notou que Carlos virou o rosto e deu uma risadinha, afastando a mão em seguida.
Quando saíram do cinema, Carlos sugeriu eles irem a um bar para conversar sobre o filme. Manuel ficou surpreso com a proposta, ainda mais quando o moço sugeriu irem a um estabelecimento próximo a zona de meretrício da cidade. “Lá ninguém vai reparar na gente”, completou Carlos em resposta a expressão meio desconcertada de Manuel. No caminho foram relembrando momentos do filme, as cenas de ação que Carlos achou eletrizantes e ao chegarem no bar, uma birosca apertada com uma luz vermelha como única fonte de iluminação, ocuparam uma mesa nos fundos. Carlos parecia conhecer o local e pediu uma cerveja a uma mulher de cabelo louro com bobes e lenço preto cujo comportamento mostrava ser ela a proprietária.
Apenas outra mesa estava ocupada com um casal formado por uma prostituta e seu cliente. Carlos e Manuel conversaram sobre filmes e aviões, outro assunto que os aproximava, mas nada comentaram sobre o roçado de mãos durante a sessão. Manuel contou um pouco da sua vida e quis saber mais sobre o rapaz, mas o garoto se limitou a dizer que estava na terceira série do ginasial no Diocesano e tinha uma irmã mais nova. Eles beberam três cervejas e quando já estava perto da meia noite, o rapaz disse que precisava ir embora. Manuel pagou a bebida e voltaram pelo mesmo caminho. Na praça perto do cinema se despediram e Carlos sugeriu que fossem ao cinema na semana seguinte.
Outra semana destrambelhada para Manuel. Ofícios, tabelas de horários de chegada e saída de aviões, passavam pelas mãos dele sem que fossem ao menos lidas. Manuel sentia estar loucamente apaixonado por Carlos. A impossibilidade de repartir seus sentimentos com alguém o deixava ainda mais atordoado. Só quando avistou o menino de camisa azul, calça preta, alpargatas bege e o cabelo com uma franja estilo jovem guarda se acalmou um pouco. Notou o cabelo diferente. “Gostou?”, disse Carlos em tom esnobe. “Sim, você tá boa pinta”, respondeu Manuel. “Estou um pão, hein?”, rebateu o menino rindo e sem pestanejar acrescentou: “em vez de ver filme, vamos direto pro bar?” Manuel concordou e sentiu um calafrio.
Foram na mesma birosca do domingo anterior e mal haviam terminado a segunda cerveja, Carlos disse que queria conhecer o apartamento de Manuel. O calafrio aumentou e Manuel quase não conseguia responder. Pensou nos riscos e no que podia acontecer pelo fato de levar um rapaz de 17 anos para sua casa. Mas o olhar safado de Carlos mandou qualquer dúvida para o espaço. Quando entraram no apartamento, Carlos tirou a camisa e abraçou Manuel. Quando sentiu o corpo de Carlos colado no seu e as mãos apalpando suas nádegas, Manuel se entregou.
A loucura da paixão não dava sossego a Manuel. Todos os domingos o mesmo roteiro se repetia sem alterações: praça, birosca e apartamento. Depois de fazerem sexo, Carlos vestia-se, dava um abraço em Manuel e ia embora por volta das dez da noite. Manuel caia numa indolência amorosa revivendo os beijos, relembrando da sua mão deslizando pelo peito liso do garoto ou desfazendo sua franja. E se regozijava em ter agora alguém com um belo rosto de expressão angelical para adorar.
Manuel queria encontrar Carlos mais vezes e ir com ele a outros lugares, mas o rapaz sempre dizia não. “Você tá lelé da cuca? Ninguém pode saber que eu saio com um homossexual!”. Manuel ficava chateado, mas concordava que não seria prudente. Às vezes Manuel não resistia e falava em viajar para um lugar onde ninguém os conhecesse, com ele se passando por ser seu irmão mais velho. “Lá vem você com esse papo furado outra vez. Vou acabar deixando de vir aqui…”, ao ouvir isso, Manuel entrava em desespero. “Não, não, meu amor, não faça isso comigo”.
Desde que se conheceram, apenas um domingo Carlos não foi ao apartamento porque teve que viajar com sua família. As duas semanas entre um encontro e outro foram um tormento para Manuel. Após dois meses de convivência, Carlos insinuou que queria comprar uma roupa para usar na apresentação que dizia que faria no show de calouros cantando músicas de Roberto Carlos. Totalmente enamorado, Manuel se ofereceu para comprá-la, queria vê-lo brilhar no show. Carlos disse que o melhor seria ele dar o dinheiro para ele mesmo comprar o tecido e mandar o alfaiate costurar ao seu gosto. Manuel aquiesceu. A partir daí, vez por outra, o rapaz fazia pedidos, sendo sempre atendido. Mas a tal apresentação nunca acontecia.
Cinco meses depois do primeiro encontro, Manuel estava completamente obcecado por Carlos. Tinha sonhos eróticos com o rapaz, se masturbava pensando no corpo de Carlos, as poucas horas que passava com ele eram os únicos momentos em que se sentia apaziguado. A cada novo encontro, antes do rapaz ir embora, sempre perguntava: “você me ama de verdade”. Para não desagradar seu amante, Carlos sempre respondia: “amo mais do que tudo nessa vida”. Manuel tinha vontade de seguir Carlos e ver onde ele morava, ver os seus pais, mas pensava o quanto isso poderia aborrecê-lo.
Assim, se conformava em pensar nele o tempo que podia, embora nem sempre fossem pensamentos agradáveis, pois nestas divagações surgiam coisas ruins que poderiam ocorrer. Imaginava a família de Carlos descobrindo o relacionamento e proibindo eles de se encontrarem, imaginava Carlos com uma doença fatal ou sofrendo um acidente que tirasse sua vida. Também sonhava com ele e Carlos fugindo de Mossoró para morar no Rio de Janeiro onde as pessoas com certeza não se importariam com o amor entre dois homens.
Na primeira semana do sexto mês, Carlos disse a Manuel que não poderia mais encontrar com ele no domingo, pois um amigo tinha visto eles juntos e andara fazendo comentários maldosos na escola. Para despistá-lo, Carlos disse que voltaria a sair com os amigos do ginásio nos domingos à noite. Manuel ficou aflito. “Se essa história chega nos ouvidos dos meus pais vai ser fogo na roupa. Vamos nos ver nas sextas-feiras”, argumentou o menino. Para Manuel o que importava era não deixar de vê-lo. E assim foi feito. Mas na terceira sexta-feira após a decisão, Manuel achou Carlos frio e distante. “Que é que você tem meu anjo?”, indagou Manuel meio cabreiro. “Nada não, muita coisa pra estudar no colégio”.
Na semana seguinte, Manuel resolveu ir ao cinema no domingo, escolheu então o Rivoli que era mais afastado. Por ser um musical com Elvis Presley, viu que o cinema estava lotado de jovens em grande algazarra. De imediato pensou se Carlos não estaria ali. Não deu um minuto e ele viu um grupo de moças e rapazes entrando na sala e entre eles Carlos abraçadinho com uma menina de cabelos cacheados e boa aparência. Manuel gelou. Carlos percebeu que Manuel o tinha visto, mas passou direto pela fila onde ele estava sentado, continuou dando beijinhos na garota e sentou-se algumas filas à frente.
Quando as luzes apagaram, Manuel saiu. Chorava como uma criança enquanto voltava para casa. Não dormiu e passou os dias seguintes a base de calmantes. Na sexta-feira como era de costume foi até a praça esperar Carlos. Estava pálido e com olheiras. Carlos não apareceu. Foi até a birosca onde costumavam ir e ele também não estava lá. Perguntou a mulher do balcão se ele tinha aparecido e ela disse que não o tinha visto desde a última vez que eles foram lá. Um ciúme doentio se apossou do espírito de Manuel.
Sem ter como falar com Carlos, a prostração de Manuel foi crescendo e visivelmente abatido, alegando estar doente, ele pediu uns dias de licença no DAC. Na sexta-feira seguinte foi a praça na esperança de rever Carlos. Por volta das 19 horas, um rapaz desconhecido se aproximou dele e disse-lhe que Carlos pedira para avisar que ele o estava esperando no bar como de costume. Manuel disparou em direção ao bar, enquanto andava acelerado só pensava no que diria a Carlos, que o perdoaria, pois o amava como ninguém…
Ao chegar viu Carlos sentado na mesma mesa onde tinham ficado na primeira vez. Aflito se sentou e antes mesmo de dizer oi, percebeu o semblante fechado do rapaz. Calou-se. Carlos apenas disse que não podia ficar com ele naquele dia. A vista de Manuel escureceu. O ciúme corroeu sua alma. Insistiu em saber o motivo. Perguntou-lhe se era por causa da moça que estava com ele no cinema. Carlos negou e pediu para ele ter paciência, prometendo que na semana seguinte eles conversariam. Disse isso e partiu. Sozinho, Manuel bebeu umas cinco cervejas e embriagado passou a conjecturar uma forma de vingança.
Na sexta-feira seguinte como havia sido combinado, Manuel seguiu para o encontro. Seus passos eram firmes e decididos e se aceleraram quando ele avistou a luz vermelha do bar banhando a calçada um pouco mais à frente. Quando chegou na porta do estabelecimento viu Carlos sentado na mesa usual com uma cerveja e um copo quase cheio. Ele se aproximou e percebeu a expressão de receio do amante quando divisou com clareza o desvario estampado em seu rosto. Sem dizer uma palavra, Manuel se aproximou, pegou Carlos pelo pescoço e o arrastou até o fundo do bar, encostou o rapaz na parede, sacou um revólver e disparou toda a carga da arma na cabeça dele. Soltou o corpo sem vida no chão e saiu correndo. No dia seguinte, policiais arrombaram a porta do apartamento de Manuel e o encontraram morto no chão da cozinha ao lado de uma lata vazia de formicida.
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