Em 2009 Guilherme Leme Garcia e Vera Holtz vivenciaram o primeiro ciclo do monólogo O Estrangeiro, baseado no romance de 1942 do filósofo e jornalista franco-argelino Albert Camus. Na época, se inspiraram em uma montagem do dinamarquês Morten Kirkskov e a temporada durou três anos e meio, com um fim em 2012 no Festival de Teatro de Edimburgo.
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O Estrangeiro acompanha a trajetória absurda de Meursault, um homem alheio, indiferente à realidade à sua volta e que vive uma vida relativamente comum, até que, em um curto período de tempo, perde sua mãe, se torna um assassino, é julgado e condenado a morte. A partir disso, o banal dá lugar ao absurdo, e a única coisa que se pode fazer é aprender com ele.
Agora, Guilherme Leme e Vera Holtz mergulham mais vez na história do protagonista Meursault – vivido por Leme – mas criam uma versão própria versão. Com o intuito de se afastar do texto dinamarquês, batizaram o espetáculo de O Estrangeiro_RELOADED. “Eu não queria fazer a mesma coisa, porque senão não ia me dar tesão de subir no palco de novo, sabe? Eu ia parecer que estava comendo prato requentado”, afirma Guilherme Leme em entrevista à Revista O Grito!.
A peça chega ao Recife com sessões neste final de semana (24 e 25/08) no Cine Teatro do Parque. Guilherme Leme Garcia conversou sobre o retorno ao personagem, as adaptações feitas na peça e a volta na colaboração com Vera Holtz.
Em 2009 você teve seu primeiro momento vivendo O Estrangeiro. Qual foi o motivo de trazê-lo de volta?
Na pandemia, logo que abriu, logo que deu aquela pequena abertura, aonde já se podia ir um pouco no teatro, com 20% da casa de máscara, lembra? Tinha um teatro aqui em São Paulo, ele infelizmente fechou, chamado Eva Herz, dentro da livraria Cultura, e foi lá que eu estreei a peça em 2010. Na pandemia, quando teve essa abertura, o André Acioli, que administrava o teatro, começou a chamar algumas pessoas que já tinham feito monólogos lá, porque ele não queria muita gente, até porque não se podia ter muita gente no palco, né? Então ele pegou peças, monólogos, convidou os atores pra fazer lá e eu fui um dos convidados.
Só que na época, eu falei “ai, André, não vou voltar com a peça de novo. Muito trabalho, decorar tudo de novo” e eu não voltei naquela época. Só que ele – que hoje administra o teatro Vivo – sempre que encontrava comigo, falava “vamos voltar com O Estrangeiro!”. Tanto ele insistiu, junto com o meu produtor, Sérgio Saboia, que eu falei “Olha, Sérgio e André, você é o produtor, você é dono do teatro. Se vocês entrarem em um acordo, eu faço a peça de novo, eu volto com ela, em comemoração aos dez anos”, porque a gente parou [com a peça] há dez anos atrás, em 2014.
Então, abriu o edital da Vivo, Sérgio entrou e nos ganhamos o edital, aí eu falei “agora tem que fazer, né?” [risos]. A primeira coisa que fiz foi ligar para Vera Holtz, minha diretora na época, e falei “Vera, eles querem que a gente volte para O Estrangeiro, tem produção do Teatro Vivo, tem um espaço, tem um teatro para voltar. Vamos voltar?”, e aí ela falou “Vamos, vamos fazer uma nova leitura”, e aí eu falei “Não só nova leitura, tudo novo”. Eu não queria fazer a mesma coisa, porque não ia me dar tesão de subir no palco de novo, sabe? Iria parecer que estava comendo prato requentado [risos]. Vamos fazer tudo novo: encenação, cenário, figurino, trilha. Tudo. Até a minha interpretação eu quero que seja diferente. E assim foi feito.
Nós fizemos tudo com o mesmo texto, mas uma nova versão totalmente diferente. Por isso que eu coloquei o subtítulo de “reloaded”, que é recarregado. É uma expressão que se usa muito na música, quando um artista faz uma nova leitura da obra dele. Ou quando alguém mexe em uma música que já existe e dá uma nova cara para ela. E assim foi feito.
A gente passou por pandemia, passou por guerras, passou por… Enfim, muitos monólogos foram feitos, muita arte foi repensada, foi relida.
Meursault é um personagem que parece se distanciar do público, ética e moralmente falando, e a história nos aproxima dele. Como você fez para se aproximar dele? Há algo diferente nesta segunda aproximação?
Na primeira montagem, o meu trabalho – e da Vera – foi se aproximar o máximo possível do Meursault, do personagem, e do Camus. Porque, no meu entender, e no entender da Vera, por trás do Meursault, existe o Camus escrevendo. A gente vê que o Camus está ali por trás o tempo todo. Então, a nossa primeira intenção foi aproximar o máximo do personagem, entender aquele personagem, um personagem amoral, que não liga para as regras do jogo, não joga o “jogo da vida”. Ele é um personagem que lida com os sentidos do ser humano, a audição, com o tato, o olfato, o paladar. Esse é o universo do Meursault, ele não lida com as normas estabelecidas pela sociedade, sabe? O lugar da vida dele é outro. É ele, a natureza e as coisas sensíveis ao ser humano.
Quando a gente fez essa nova montagem, percebemos que a minha representação estava muito perto da antiga, e Vera que fez uma provocação muito interessante: “na primeira vontade, a gente se aproximou do Meursault e do Camus. Agora você vai trazer uma outra camada, que é o Guilherme em cena.” Então eu apresentei os sentimentos e o meu olhar no personagem, isso eu levei pra frente. E com isso a gente teve um outro tipo de interpretação, mais visceral, mais potente.
Você falou de “trazer o Guilherme em cena”. Você é uma pessoa de pensamentos existenciais constantes?
Olha, eu acho que é inerente a todo ser humano pensar nas questões da vida. Não existe, eu acho, uma pessoa do mundo que nunca, por um segundo da sua vida, não pensou assim “O que é esse mundo? O que é a vida? O que eu estou fazendo aqui?”. Todo mundo já passou por esse questionamento algum dia. Impossível a gente não passar. Então, eu acho que as questões do Meursaut, o existencialismo e o absurdo que rege toda a vida dele, todo movimento existencialista, eu acho que é inerente a todo ser humano. Todo mundo é um pouco o Mersault.
O período pandêmico impulsionou um certo pensamento existencialista em quase todo mundo. Diante de tantas mortes, passamos a questionar o sentido e motivo de estarmos vivos. Depois os conflitos tomaram lugar ao redor do mundo. Esses acontecimentos tiveram algum impacto na reformulação que vocês deram ao espetáculo?
A gente tem que lembrar o seguinte: esse texto foi escrito em 1942, no meio da 2ª Guerra Mundial. Eu estou apresentando ele agora, em 2024, no meio de uma suposta 3ª Guerra Mundial. A gente está vendo que o mundo está quase explodindo, né? A gente tem uma guerra horrorosa entre Rússia e Ucrânia, uma guerra horrorosa entre palestinos e judeus. É praticamente uma 3ª guerra. Uma Guerra Fria em alguns momentos, mas é uma guerra muito grande que está acontecendo. E nesse tempo todo também, falando agora dessa montagem, de 15 anos pra cá, tanta coisa aconteceu no mundo, né? A gente passou por pandemia, passou por guerras… Enfim, muitos monólogos foram feitos, muita arte foi repensada, foi relida. Então, é claro que esse novo olhar, foi trazido por mim e por Vera para a cena.
Em uma entrevista de 2012, sobre o encerramento do primeiro ciclo com o espetáculo, você falou sobre a força do questionamento de Meursault sobre a existência de Deus. Hoje, com um cenário político tão ligado a figuras religiosas, você ainda enxerga a mesma força no questionamento trazido pelo texto?
Eu acredito que a força é a mesma, porque a religião sempre foi muito potente, desde sempre, e desde que o texto foi escrito. A religião no mundo, seja ela cristã, evangélica, católica, judia, seja o que for, é um vetor muito importante no processo da civilização. Então quando o Meursault questiona, com o padre, a existência de Deus, eu acho que é um questionamento que desde sempre existiu, desde que o homem inventou Deus. Deus é uma intenção do homem, né? E desde que o homem inventou Deus, ele próprio, o homem, o ser humano se questiona: “Será que existe Deus?”. E muita gente diz que acredita que não, ou acredita que acredita que sim. Mas eu acho que é uma questão universal e atemporal, sabe?
Como é a experiência de voltar a trabalhar com Vera Holtz? Você notou algo diferente na relação de vocês com o espetáculo?
Eu acho que o ponto mais importante, a dificuldade maior que a gente enfrentou, foi não repetir nada do que a gente já tinha feito. Então, muitas vezes a gente estava ensaiando e aí eu ou ela falávamos: “Não, isso aqui eu já fiz, vamos fazer diferente”. A encenação foi um pouco mais fácil porque a gente criou, realmente, outro ambiente. Mas isso da interpretação, às vezes eu fazia uma coisa e a Vera falava “Mas você está fazendo igualzinho à primeira montagem. Vamos fazer diferente”, e eu falava “Eu não sei fazer diferente, Vera” [risos]. Era difícil, e daí a gente teve que batalhar, tinha que correr atrás. Como é que a minha intenção? Como é que é esse novo falar? Como é esse novo olhar? Eu acho que a maior dificuldade que a gente enfrentou, tanto eu quanto a Vera, foi nos distanciarmos o máximo possível – e eu acho que a gente conseguiu – da primeira montagem.
Quais são as expectativas para esse segundo ciclo de “O Estrangeiro”? Quais contribuições e reflexões a peça tem a oferecer ao seu público?
Olha, eu acho que essa versão é mais visceral, e de uma certa forma, mais didática, no sentido de que a história é mais bem contada do que da primeira vez. E eu acho que isso é o que traz o público para dentro da peça, sabe? As pessoas realmente ficam assistindo, como se estivessem assistindo um folhetim, porque é uma novela, a história dele é uma novela. E eu acho que isso traz o público para dentro do espetáculo.
Serviço
O Estrangeiro Reloaded
Teatro do Parque, Rua do Hospício, 81 Boa Vista
Sábado 24 e domingo 25, 19h
Duração 70 min. Classificação 16 anos
Ingressos a R$ 60 e R$ 120 à venda pelo Sympla
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