A Filha do Pescador
Edgar De Luque Jácome
BRA, COL, DOM e PUR, 2024. 1h20. Drama. Distribuição: Bretz Filmes
Com Nathalia Rincón, Modesto Lacen, Henry Barrios, Jesús Romero
Um casebre paupérrimo no meio de uma praia isolada do Caribe colombiano. A imensidão do oceano se contrasta à estreiteza arquitetônica da casa de Samuel (Roamir Pineda), exímio pescador da região. Durante a madrugada, uma mulher bate à sua porta e pede para entrar. Por trás dos cabelos grandes e da maquiagem, ele reconhece o rosto do filho que partiu há anos do local. Hoje uma mulher trans, Priscila (Nathalia Rincón) é forçada a retornar ao lar, porque está fugindo dos paramilitares. Dores até então submersas voltam à superfície e dão tom de A Filha do Pescador, coprodução internacional (Colômbia, Porto Rico, República Dominicana e Brasil) que chega aos cinemas do país nesta quinta (18).
Sempre bem-vindos, filmes cujas temáticas contemplam a comunidade transgênero são, apenas por existirem, dignos de reconhecimento. O cinema, assim como qualquer outra expressão artística, é espaço majoritariamente cis; trazer corpos trans para a frente da câmera e contar suas histórias é um ato de resistência, necessário e urgente. Portanto, A Filha do Pescador, longa-metragem de estreia do diretor Edgar De Luque Jácome, tem sua relevância resguardada. Dito isto, o filme carrega consigo os tropeços usuais da inexperiência.
A homofobia, implícita ou explícita, está incrustada nas mais diferentes camadas da sociedade. A obra opta por levar a discussão para uma realidade bem específica: a de pescadores humildes, todos homens cis, a maioria mais velhos, embrutecidos pelo machismo estrutural. A chegada de Priscila ao lugar, quase como uma tempestade progressista demais para mentes tão arcaicas, provoca uma série de comportamentos abusivos – e seu pai é, talvez, o mais resistente àquela presença. Invariavelmente, o filme recai nos clichês do pai machista contra a filha queer que ele sequer consegue chamar no feminino.
Servindo-se de todos os elementos melodramáticos (a trilha sonora melosa, as esquemáticas cenas de rompantes de raiva, os momentos de redenção) ao seu dispor, Edgar De Luque Jácome parece não querer correr riscos e evita experimentos estéticos mais ousados. Não há traço autoral no filme e ficamos com a impressão de já ter visto aquilo antes, tantas e tantas vezes. O cineasta, contudo, engrandece sua narrativa em momentos nos quais demonstra maior cuidado na composição dos quadros (como quando filma de dentro da casa e “emoldura” o oceano com a porta ou a janela).
Também estreante em longas, a atriz Nathalia Rincón se esforça para construir uma Priscila interessante, mas sua inexpressividade compromete a dramaticidade exigida pela personagem. Mais eficientes são as atuações de Roamir Pineda, como o pai, e principalmente Roosevel Gonzalez, que concebe um personagem humanista, mesmo dentro da sua visão limitada de mundo, como o tio de Priscila.
Mas os maiores problemas de A Filha do Pescador residem nos caminhos narrativos tomados por um roteiro fragilíssimo. Observem como as poucas informações oferecidas sobre a protagonista transexual reforçam estereótipos extremamente negativos: a personagem se prostitui, é suspeita de ter assassinado um policial e aparentemente não tem amigos. O filme é descuidado e entrega ao espectador uma personagem sem complexidade.
Outro ponto que me incomoda particularmente é o fato de o pai da personagem só iniciar um processo de aceitação da filha trans quando se encontra vulnerabilizado por doença e necessita de cuidados médicos. O filme reverbera uma mensagem do tipo: ok, já que você está me servindo, eu aceito (ou perdoo) sua transexualidade.
Válido por algumas reflexões que propõe, o filme permanece no raso, sem adentrar no mar de discussões mais profundas sobre gênero, para além da mera observação do corpo. Saí com a impressão que os dramas da comunidade trans foram etiquetados e dispostos no estoque de filme-lgbt-para-hetero-ver. Uma obra com o potencial desperdiçado.
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