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Retratos Fantasmas, em busca do Recife perdido: uma conversa com Kléber Mendonça Filho

O documentário do cineasta pernambucano é uma declaração de amor a uma cidade em constante transformação

Essa entrevista com o cineasta Kleber Mendonça Filho aconteceu numa manhã de quinta-feira num café no tradicional bairro recifense das Graças, Zona Norte da capital pernambucana. Foi, na verdade, uma conversa de velhos conhecidos, onde eu me dei conta que já se passaram muitos anos desde que tive contato com Kleber pela primeira vez lá no início da última década do século passado. 

Primeiro em um curso de cinema que ministrei na Fundação Joaquim Nabuco, no Derby, e, pouco tempo depois, como colegas de redação do Caderno C do Jornal do Commercio. E foi gratificante perceber que, se por um lado a passagem do tempo lhe trouxe mudanças físicas – principalmente pelos cabelos agora grisalhos e um olhar mais maduro – por outro, permanece o entusiasmo de falar dos temas que sempre marcaram nossos bate-papos: as imagens (tanto fotográficas quanto cinematográficas), a cidade do Recife e as salas de cinema, que agora ressurgem com força esplêndida no seu novo filme Retratos Fantasmas.

Uma obra que se equilibra entre o documental e o experimental e com o jeito inconfundível que tem caracterizado o seu fazer fílmico. Kleber é um cineasta que não tem pressa, que gosta de mastigar bem as coisas e de preparar o espectador para apreciar o que ele tem para mostrar. Nessa conversa para O Grito! nos detivemos sobretudo na gênese e no processo de criação de um dos filmes mais carinhosos e sinceros que já foi feito para a cidade do Recife.

O GRITO! – Como surgiu a ideia de realizar Retratos Fantasmas?

KMF – Tem filmes que surgem num determinado momento quando você entendeu o que queria. Eu acho que eu venho fazendo Retratos Fantasmas há muito tempo. Eu o comecei há mais de 30 anos quando fiz o curso de cinema ministrado por você e Ana Catarina Galvão, em 1991, na Fundação Joaquim Nabuco. Um curso que me deu um bom aprendizado e onde conheci pessoas e fiz amizades que permanecem até hoje. Naquela época eu estava exatamente filmando e fotografando as salas de cinema do Recife que já tinham desaparecido, as que estavam abandonadas ou as que estavam abertas e iam fechar, pois já estava muito claro o que ia acontecer. E isso inclui duas salas em particular: o Art-Palácio e o Trianon, as quais eu acompanhei o processo de fechamento.

E naquele momento eu estava me formando em jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco e realizei o Casa de Imagem (1992) e o Homem de Projeção (1992) desenvolvidos com colegas da universidade e com minha companheira da época Elissama Cantalice com quem fiz meu projeto de conclusão do curso. Esses filmes foram lançados e eu sempre tive cuidado de guardar o material que registrei, guardo fitas, negativos, fotografias impressas…, mas o tempo vai passando, você vai vivendo sua vida, vai fazendo outras coisas e um dia você resolve dar uma olhada nesse material. E isso aconteceu várias vezes, na verdade, ao longo dos últimos 30 anos.

Aí quando chegou o digital, há cerca de 20 anos, eu atualizei esse material, porque ele estava em VHS e eu achei que era uma boa oportunidade de prolongar a vida técnica dele. Até que uns 10 anos atrás, eu voltei a namorar esse material e achei que ele era muito interessante.

Eu tive a preocupação de montar um álbum, como se fosse um álbum de recortes, um álbum de família do próprio Recife

Kléber Mendonça Filho

O que tinha de especial neste material?

Em 20 anos muita coisa mudou na nossa vida e no nosso universo cultural e tecnológico. Eu gosto muito de umas imagens feitas por mim no Art-Palácio com a câmera entrando na bilheteria do cinema. A bilheteria, em 1990, ainda era a mesma de 1940. Ela estava absolutamente intacta. Era toda revestida em madeira com uma máquina registradora totalmente mecânica e você vendo essa bilheteria de 1940 hoje, nas imagens em 2023, é muito impactante.

Há muitos outros exemplos dentro do material. Um dos mais fortes são as imagens de Seu Alexandre (Alexandre Moura), uma das pessoas mais especiais que eu tive a sorte de conhecer na minha vida. E ele faleceu em 2002. Redescobrir o material significou também passar muito tempo com Seu Alexandre. Porque eu filmei muito ele. Seu Alexandre falando, Seu Alexandre entrando na estação de ar-condicionado do Trianon. Ele saindo na Rua do Sol para pegar a [Avenida] Guararapes. Aos poucos eu fui entendendo que o tempo foi muito generoso com esse material.

E aconteceu outra coisa que não estava planejada. Em 2016, eu e minha família decidimos sair do apartamento localizado no bairro de Setúbal que eu herdei da minha mãe Joselice Jucá e onde eu morava com ela e meu irmão desde 1979. E naquele momento eu comecei a pensar muito no papel que aquele lugar tinha tido na minha vida e obviamente eu cheguei nos meus filmes, porque eu filmei esse apartamento de maneira muito consistente e repetida por mais de 30 anos. Das festas e reuniões de amigos filmadas em VHS aos curtas metragens feitos com mais recursos e o meu primeiro longa-metragem, O Som ao Redor, que também foi feito no apartamento.

E aí eu comecei a pesquisar no meu próprio arquivo essas imagens e vi que elas não eram tão diferentes das imagens dos cinemas que eu tinha feito ao longo dos anos. Lugares que eu conheço como a palma da mão: minha casa e os cinemas. Esses locais foram fotografados e filmados por mim de maneiras completamente diferentes. E eu percebi que tinha ali um exercício de montagem clássica de cinema e que, às vezes, ela é tão clássica que se torna experimental também. Ela consegue dar a volta, quase começar a morder o próprio rabo. E eu gosto muito dessa ideia do clássico que abandona o clássico e passa a ser um negócio experimental. E aí eu entendi que eu estava com uma energia muito grande para pesquisar o filme, pesquisar o filme no sentido de entender se ele se sustentaria como um exercício de imagem montada.

Vendo Retratos Fantasmas constatamos que ele trabalha dois espaços, um pessoal, o do seu apartamento, e um aberto que é o centro do Recife. São dois espaços que lhes são muito caros e que você conhece muito bem. E quando você vai para o centro do Recife são as salas de cinema e os seus entornos que captam um certo espírito da cidade, construindo uma geografia sentimental a partir de vários filmes que formam um único filme. Como foi compor essa geografia sentimental de lugares e pessoas?

Eu tenho um sentimento meu em relação à cidade do Recife. Então eu comecei a me perguntar: como é que eu vou passar isso sem que pareça uma alucinação? Eu sei que muita gente acha o centro do Recife muito interessante. Isso já foi escrito, filmado, cantado, mas eu não podia basear minhas impressões apenas em coisas que eu li no jornal ou vi na televisão. Eu tinha que pensar no que eu sinto.

A minha relação com o centro da cidade passa pelos cinemas, obviamente, mas passa também pelas vezes que meu pai levou a mim e meu irmão para ver o carnaval no centro da cidade. Ou minha mãe levando a gente no sábado de manhã na livraria Livro 7. São memórias afetivas. Eu morei com minha família alguns anos na Inglaterra e quando voltei com 18 anos comecei a andar pelo centro do Recife e me disse: Uau! Esse centro da cidade é muito massa. Por exemplo, eu descobri o Teatro Parque por acidente. Eu estava andando e vi uma entrada e fui entrando e eu descobri essa coisa maravilhosa que é o Teatro Parque. Então, para mim é muito importante lembrar de 30 anos atrás quando eu saia de casa em Setúbal, com dois filmes na bolsa para levar no beco do fotógrafo para revelar. Aquilo era algo que eu gostava de fazer e lembro com muito carinho.

Todas essas impressões estavam ali para eu expressá-las no filme. E a grande questão era: isso que eu quero mostrar, essa sensação a qual eu estou passando, é algo que eu posso compartilhar e as pessoas vão dizer, eu também me sinto assim? O maior desafio é conseguir transmitir uma ideia a partir das imagens e da montagem e você só tem certeza disso depois que o filme fica pronto. Em Cannes, por exemplo, escutei pessoas me dizendo “eu nunca fui ao Recife, mas de certa forma me sinto agora como se tivesse ido lá”. Isso é um elogio ao filme.

Também em Cannes, dois jornalistas do Rio e de São Paulo me perguntaram por que um filme sobre o Recife? Eu sou do Recife e o filme traz uma série de emoções que para mim são importantes em relação a esse lugar que eu tenho no meu coração. Isso não é algo novo. Tem muitos autores e autoras que fazem isso, que escrevem sobre as suas cidades. Spike Lee faz filmes sobre Nova York. Truffaut fez um filme sobre Paris, Jacques Demy sobre Nantes. Então… Por que não Recife?

Creditos Joao Carlos Lacerda
São Luís, nos anos 1980. “Recife tem uma estranha relação com a manutenção de uma certa ideia de cultura que preserva o Cinema São Luiz, espaços que resistem e continuam funcionando”.

Isto é uma coisa interessante no filme, você se filia a cineastas que demonstram afeto pela cidade onde vivem e no Recife temos exemplos de realizadores que trouxeram isso para suas obras como é o caso de Jomard Muniz de Britto, Cláudio Assis, Fernando Spencer e cujas imagens você inclui em Retratos Fantasmas. Como foi o processo de escolha do material que não foi filmado por você?

Eu tive a preocupação de montar um álbum, como se fosse um álbum de recortes, um álbum de família do próprio Recife. As imagens mais conhecidas e divulgadas sobre o Recife são muito limitadas e repetidas. Em geral são imagens soltas de carnaval mal preservadas. Há poucas imagens com qualidade como as do filme A Filha do Advogado, de Jota Soares, de 1926, que foram restauradas nos anos 1990. Eu me recusava a acreditar que aquelas eram as únicas imagens que tinham sobrevivido de uma cidade grande e importante no Norte-Nordeste do Brasil.

Então, eu fui procurar novas imagens e aos poucos fui achando muita coisa. Eu as encontrei na televisão, em acervos pessoais de famílias e no próprio cinema pernambucano. No filme Amarelo Manga, de Cláudio Assis, temos imagens do centro do Recife em Cinemascope. Essas imagens já eram históricas em 2001 e são muito mais hoje em dia. Quando eu uso o Matheus Nachtergaele andando na Rua do Sol, aquilo para mim é uma emoção muito grande, porque é a Rua do Sol, filmada em Cinemascope por Claudio Assis há 23 anos. São imagens muito importantes. O mesmo podemos dizer das imagens de Antonio Cadengue vestido de vampiro na Ponte da Boa Vista no filme de Jomard Muniz de Britto, Noturno em (Ré)cife Maior (1981), que você me mostrou pela primeira vez no seu vídeo Eternamente Ágora (1987). Eu quando vi aquilo 30 anos atrás, eu disse: caralho, então tem um filme de vampiro, usando uma paisagem que para mim é muito cara!

A Ponte da Boa Vista é um dos lugares mais filmados dessa cidade. Está nos filmes de Jomard, de Claudio Assis, de Kátia Mesel, de Juliano Dornelles, tem imagens dela em VHS, mini-DV, Super 8, então quando eu filmo a ponte em março de 2023 é como se eu estivesse filmando a sala lá de casa. Eu acho que isso é uma chave interessante para entender Retratos Fantasmas. Esse álbum é uma das coisas que eu pessoalmente mais gosto no filme.

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Kléber Mendonça (dir) ao lado de sua esposa e produtora do longa Emilie Lesclaux, em Cannes este ano. (Foto: Soraya Ursine/Divulgação).

É muito boa essa ideia de um álbum que a gente está virando as páginas e vai se surpreendendo com essas imagens que ficaram aí suspensas no tempo. Contudo, embora você enxergue no filme um Recife do passado, eu acredito que você também traz um Recife do presente. E o que é esse Recife do presente para você quando se tem esse amor pela cidade fundado em coisas tão distantes?

O perigo, e eu tinha isso em mente sempre, era fazer um filme saudosista. Ficar dizendo: ah! Era tudo tão melhor antigamente. Eu acho que você se torna mais aberto à vida como pessoa quando você entende a passagem do tempo. Ao resistir a isso você derruba a chance de estar feliz. A mesma coisa acontece com uma cidade. As cidades mudam e isso está no filme. Por exemplo, agora aqui no Recife tem uma coisa que eu nunca pensei que eu veria na nossa cidade. Um parque que respeita o Capibaribe. Eu cresci sendo levado a não ver o rio. Vamos sair daqui que aqui fede, olha o cachorro morto, mas agora tem um parque.

As cidades também mudam para pior, principalmente quando os interesses econômicos tomam conta da coisa e provocam decisões que não são boas para a cidade, mas são boas para os negócios. A gente precisa estar atento a isso. Então eu vejo que o Recife mudou e nos meus 50 anos eu vi essas mudanças acontecendo na minha frente. A maior parte delas foi ruim, mas sem querer ser Poliana, acho que algumas foram boas. E não ter uma abordagem saudosista me ajudou. Apesar do tom seco e um certo ceticismo, você vê que tem amor ali. Quando eu era adolescente eu lembro de passar na frente dos cines Rivoli, Boa Vista, Trianon, Moderno e parar, mesmo estando de carro, para ver os cartazes. Mas tem coisas hoje que me espantam um pouco como o grande número de farmácias que existe atualmente na cidade e eu acabei colocando isso no filme. O que isso significa não sei, cada um que tire sua conclusão.

Mas, veja só, eu acho incrível nós termos ainda um cinema de rua como o São Luís. Muitas cidades no mundo não tem o seu São Luís. São Francisco, nos Estados Unidos, por exemplo, pegou agora o Castro e transformou num híbrido de sala de música. Uma sala magnífica que agora não é mais um cinema exatamente e olhe que São Francisco é uma das cidades onde tem mais dinheiro no mundo concentrado.

A gente reclama muito do Recife e tem muita coisa para se reclamar, mas o Recife tem uma estranha relação com a manutenção de uma certa ideia de cultura que preserva o Cinema São Luiz e o Teatro do Parque, espaços que resistem e continuam funcionando. E isso me estimulou a fazer o filme, faz parte da ideia que ele discute.

O título Retratos Fantasmas remete a coisas que não existem mais ou que estão mortas, algo muito bem representado pela foto do cartaz do filme que reproduz um grupo de arlequins mascarados, figuras típicas do carnaval de rua do Recife em décadas passadas. Todavia, o filme revela surpresas de situações atuais como o homem que aparece cuidando de um jardim no terraço de um dos edifícios da avenida Guararapes, uma área de escritórios, hoje com muitas salas comerciais fechadas e abandonadas, e onde não vislumbramos um uso residencial. Essas particularidades são fáceis de serem compreendidas por pessoas que conhecem bem o Recife e que são das nossas gerações. Mas, e o espectador de fora, como você acha que ele vai perceber o filme? E mesmo os recifenses mais jovens que vivem a cidade de outra maneira, que reação você espera?

Eu acho que existem muitas cidades dentro da cidade. E essa cidade que eu enxergo talvez seja muito interessante. Um amigo francês, que nunca veio ao Brasil, me falou que ficou muito impressionado com a sequência do carnaval. Porque ele não sabia exatamente o que estava acontecendo ali, mas tinha alguma coisa muito forte na imagem. Me refiro a sequência onde se vê uma roda de capoeira junto com um bloco de frevo. Um espectador no Rio de Janeiro ou no México pode ver aquilo e não sentir nada, não entender o que está acontecendo. Mas eu acho que tem alguns espectadores que ficam muito impactados por aquele momento, que é um momento muito particular da ideia de carnaval no Recife.

Você falou do senhor que está aguando plantas numa cobertura na Guararapes. Quando eu fui naquele lugar, eu me senti dentro de uma ideia de cinema, embora o lugar seja real, ou seja, ele existe. O mercado imobiliário é quem vende essa ideia de que o centro da cidade é um lugar ruim e faz isso para vender apartamento nas áreas consideradas nobres. Mas o centro da cidade é um lugar incrível, e aquela imagem deixa isso muito claro. A maneira como o lugar é enquadrado e mostrado, revela como ele é atraente, mas a cidade não está entendendo que esse lugar é incrível. Talvez seja esse o papel de um filme ou de um texto. Você chamar a atenção para algo cujos valores foram perdidos, porque alguém decidiu que aqueles valores seriam perdidos.

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“A maneira como o lugar é enquadrado e mostrado, revela como ele é atraente, mas a cidade não está entendendo que esse lugar é incrível. Talvez seja esse o papel de um filme ou de um texto”. (Foto: Divulgação/Cinemascópio).

Você conviveu 30 anos com esse material até chegar o momento em que você decidiu: eu vou fazer esse filme. A partir desse momento como foi selecionar e articular tantas imagens? Como você escreveu o roteiro? Conta um pouco desse processo.

Esse filme não teve roteiro, ele foi todo construído das descobertas. Quando você faz um filme em grande parte baseado em arquivo, é o arquivo que vai definir o filme. Por exemplo, quando Karina Nobre descobriu as imagens de Janet Lee e Tony Curtis visitando o Recife, na Cinemateca Brasileira, o filme teve uma explosão. Aí você diz OK, isso é maravilhoso, vai ter que estar no filme. Então isso já impacta na escolha, por exemplo, da trilha musical, que está naquela sequência do centro da cidade. Porque naquele momento, no início dos anos 1960, pelas histórias que eu já tinha escutado da exigência de os homens usarem terno para ir ao São Luís, percebe-se que o centro do Recife tinha um ar de glamour.

Outra descoberta incrível foram as fotos de Wilson Carneiro da Cunha. Por meio de sua neta, Bia, fiquei sabendo que ele tinha um quiosque na Rua Nova e que fotografou milhares de pessoas entre os anos de 1930 e 1970. São deles as fotos dos papangus e a dos mascarados que está no cartaz do filme, feitas no carnaval de 1954. E essas imagens se conectam com as que Cleodon Pedro Coelho descobriu no acervo da TV Jornal. Aí quando você junta essas imagens feitas por mim, com as encontradas por Karina, Cleodon, com as da inauguração do Cine Veneza, feitas pelo grupo Severiano Ribeiro em 35 milímetros para os seus cine-jornais, o roteiro passa a existir. Um detalhe desse processo é o uso das imagens brutas sem o som original. Elas acabam ficando mais interessantes.

Imagino que todas essas imagens estavam em suportes diferentes e algumas delas, por serem antigas, certamente apresentavam sinais de desgaste. Como foi o trabalho de recuperação?

É muito importante ressaltar que eu e Emilie Lesclaux, a produtora do filme, decidimos que toda vez que encontrássemos material de arquivo, nós faríamos a restauração desse material para utilizá-lo no filme da melhor forma possível. O material da inauguração do Veneza foi escaneado em 4k. O mesmo foi feito com o super 8 Censura Livre (1980), de Ivan Cordeiro, e com Recife de Dentro Pra Fora (1997), de Kátia Mesel. Não queríamos tratar esse acervo como se faz normalmente em documentários ou filmes de ficção no Brasil que é usar o material na forma como ele está disponível. Nós preferimos pegar o material e recuperá-lo. Nós queríamos usar 15 segundos do filme de Kátia Mesel, mas não faria o menor sentido pegar o negativo no CTAV [Centro Técnico Audiovisual, órgão federal de apoio ao audiovisual], escanear 15 segundos e devolver. Então a gente escaneou o filme inteiro, ele está restaurado agora. Inclusive em algumas sessões do Retratos Fantasmas, vamos passar junto o Recife de Dentro Pra Fora, que eu pessoalmente acho um grande filme.

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O cineasta Kléber Mendonça Filho. (Foto: Victor Jucá/Divulgação).

Retratos Fantasmas, a meu ver, tem um certo olhar etnográfico. Você concorda com essa leitura?

Não é a intenção, mas no final das contas eu acho que sim, porque se você faz uma pesquisa de campo e produz um retrato honesto de um espaço e de como a vida é vivida nesse espaço, você inevitavelmente terá um olhar etnográfico. Quando fiz O Som Redor (2012) não tinha a intenção imediata de fazer um filme sobre Setúbal, mas ele termina sendo um filme sobre o bairro. Enjaulado (1997) se passa dentro de um apartamento, mas ele faz observações sobre a vida da sociedade brasileira, ele termina sendo sobre aquele lugar onde o apartamento está localizado que é o bairro de Setúbal. Retratos Fantasmas tem um ponto de vista muito pessoal, mas é um filme muito honesto e essa honestidade leva a uma verdade, espero.

Cada parte, ou cada ato do filme, me remeteu a uma certa ideia de cinema. A primeira me lembrou o pesquisador francês Roger Odin e seus estudos sobre o que ele chama de “filme de família”, com a diversidade de filmes caseiros que você utiliza. A segunda se aproxima do documentário mais tradicional, mas dentro da chave do filme em primeira pessoa. Mas a última parte do filme causa um certo estranhamento. Ela é muito bem-humorada e tem muito a sua cara, o seu jeito de encarar o cinema, acentuando o Kleber cinéfilo que faz referência a cineastas e filmes que admira, inclusive se colocando diante da câmera. Quando você entra no táxi e começa a conversar com o motorista, o diálogo e a situação nos faz pensar no que vimos até o momento. Questionar se o cinema tem a capacidade de criar verdades e se podemos acreditar em tudo o que vemos num filme. O que te levou a concluir o filme dessa forma?

Na verdade, tudo começa com o prazer. Isso é algo pouco discutido e que eu nem falei até aqui. Para mim é um prazer investigar as imagens, mas o prazer passa também por alguma dor. Porque quando eu mergulho nas memórias com Seu Alexandre ou com a minha mãe, pessoas que são muito importantes para mim, tem uma certa dor aí, mas também tem um prazer, um orgulho. Então fazer um filme me leva obrigatoriamente a vivenciar diversas ideias de prazer. E a sequência final há anos que eu penso nela. Eu nunca a escrevi porque já sabia como queria filmar. E eu queria terminar o filme de uma maneira prazerosa. O filme começa num estilo Agnès Varda, que eu acho lindo, e termina talvez como Spielberg, Hitchcock ou The Twilight Zone, a série de TV dos anos 1960. Uma história de Trancoso, com os pés plantados na realidade, mas que daqui a pouco sai dela. Eu gostei muito como a cena ficou. Filmamos de sete da noite às duas da manhã. E o Rubens Santos é incrível. De início eu não sabia o que ia falar, mas não gosto de chegar e pedir para o ator improvisar. Então eu sentei e escrevi o diálogo.

É muito curioso o resultado porque é ficção pura, como se fosse um curta metragem. Mas ele não está descolado da trajetória do filme, mesmo num filme totalmente feito de documentos e de repente ali aquela ficção.

Sabe o que eu senti quando eu estava filmando? Uma coisa que eu acho muito boa de falar. Eu não sei se você tem uma memória associável, mas eu lembro quando eu era adolescente e ia no centro da cidade ver um filme. Tinha um momento tão incrível para mim que era quando saía do cinema. Sabe ver Viagem Insólita (1987), Beetlejuice (1988), Caçadores da Arca Perdida (1981) e quando abria a porta da sala e tinha aquela multidão saindo, com aquela música do filme de fundo, e aí você tocava na calçada e via ainda o final da tarde. Naquele momento você estava entre a realidade e o cinema.

Eu acho que essa sequência final de Retratos Fantasmas está exatamente presa entre a realidade e o cinema. É o Recife, você tem as pontes, Rubens é o motorista do táxi, as ruas são de verdade, eu sou de verdade, mas tem um clima que não é de verdade. E eu senti muito isso quando estava filmando essa sequência. E o Multiplex lhe rouba isso. Porque quando você sai da sala, entra em um corredor branco e logo tem uma vitrine na sua frente para lhe seduzir e aí você anda dentro do shopping para chegar no estacionamento. É outra coisa.

Retratos Fantasmas estreia nos cinemas em todo o Brasil no dia 24 de agosto.

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