O cineasta Claudio Borrelli aborda em seu filme Urubus, produzido por Fernando Meirelles e a O2, o mundo da pichação, prática considerada pela lei como crime de vandalismo. O roteiro conta a história do jovem Trinchas (Gustavo Garcez), líder de um grupo de pichadores, que escala os edifícios mais altos da cidade para deixar sua marca. Quando ele conhece a estudante de arte Valéria (Bella Camero), seus diferentes modos de vida colidem.
O longa é uma das produções brasileiras mais aguardadas deste ano e venceu como Melhor Filme Brasileiro do Público e da Crítica na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O filme se destaca por revelar o universo do pixo, mas trabalha o tema com a complexidade que ele merece. “O ponto chave do filme é o conflito de realidades, a luta de classes, a invisibilidade e a forma com que a sociedade desumaniza os pichadores e a juventude negra periférica; e a necessidade que essa mesma juventude tem de ocupar a cidade que lhe é negada”, disse Borrelli em entrevista à Revista O Grito!.
Nessa entrevista, ele conta detalhes da produção, como foi filmar um tema tão controverso usando os próprios pichadores no elenco e com cenas rodadas, sobretudo, à noite sob o olhar desconfiado da polícia.
O Grito! – Urubus aborda um tema que divide opiniões. Por lei, a pichação é um ato de vandalismo, portanto, um crime passível de ser punido. Boa parte da população compartilha desse senso comum e condena os pichadores por invadirem espaços privados e degradarem a paisagem urbana. Ao mesmo tempo, existem pessoas que veem a pichação, apesar do seu caráter agressivo, como expressão artística de uma parcela da juventude, sobretudo, da periferia dos centros urbanos, que utiliza o picho para exprimir seus anseios e revoltas. Diferente do grafite, ela não é feita para agradar, mas para incomodar. O seu filme, ao tomar como evento chave da história a invasão e pichação do “espaço vazio” da Bienal de São Paulo, em 2008, o coloca nesse segmento da sociedade que busca compreender o picho como arte.
Cláudio Borrelli – O evento da Bienal não é necessariamente o ponto chave do filme. O ponto chave do filme é o conflito de realidades, a luta de classes, a invisibilidade e a forma com que a sociedade desumaniza os pichadores e a juventude negra periférica; e a necessidade que essa mesma juventude tem de ocupar a cidade que lhe é negada.
Pichação é crime sim! Enquadrada como “crime ambiental”. Fica aqui a reflexão: o quanto a pichação contribui para o aquecimento global e a destruição do planeta? O muro pichado não deixa de ser muro. Ele segue cumprindo a sua função de muro.
A pichação tem técnica. Cada região da cidade tem seu traço, cada cidade tem sua caligrafia…Tudo isso exprimindo ódio, revolta e protesto, provocando algum tipo de reação, seja entendimento ou repúdio. Qual é mesmo o papel da arte?
Como você acha que será a reação por parte dos que condenam a pichação?
Eu adoraria que fosse de entendimento, de compreensão. Mas quanto se pode enxergar além do que se vê?
Seu filme teria a intenção de lançar sobre o tema um olhar interior sobre o ato de pichar de modo a levar esta discussão a um patamar menos superficial e maniqueísta?
Olha, eu tive o cuidado de não imprimir nenhum ponto de vista particular, não vitimizar, glamorizar ou vilanizar os pichadores ou a pichação. Mas criar um debate mais profundo e honesto sobre o tema, seria bom.
Você aposta que após o lançamento de Urubus o tema vai voltar a ser debatido a partir de um outro olhar?
Seria maravilhoso.
Como espetáculo cinematográfico, Urubus é um filme que surpreende e prende a atenção do espectador tanto pela trama bem construída, o bom ritmo da narrativa, o aproveitamento eficaz da paisagem urbana quanto pela coragem em desvendar um universo pouco conhecido que comporta desafios e riscos de vida, disputas violentas e uma fronteira borrada entre arte e criminalidade. A perfeita conjugação desses elementos já existia no roteiro original ou foi crescendo à medida que o filme foi sendo rodado e montado?
Como disse Spielberg: “no cinema, muita imaginação, muito dinheiro!”. Então não. Devido à limitação de orçamento, o filme foi rodado em 21 dias e não foi possível filmar o roteiro na sua totalidade. O roteiro era ainda melhor do que o filme.
Um pichador, Cripta Djan, compõe a equipe de roteiristas. Qual a principal contribuição que ele deu ao processo de elaboração do roteiro?
Urubus é inspirado nas memórias dele. Portanto, todas as cenas, todas as situações, todos os diálogos ou vieram ou passaram pelas mãos dele de alguma forma. Era fundamental a participação e a colaboração dele para retratar um mundo que é dele.
Como está inspirado em acontecimentos reais, seria possível estabelecer em quais aspectos o real/documental se sobressai?
Fora o romance e os personagens, quase todas as situações são baseadas em fatos que aconteceram. Isso é o que traz o reconhecimento geral das pessoas que vivem o picho e as ruas de São Paulo.
É muito comum filmes de ficção sobre determinado tema serem criticados por distorcer o real e com isto trair a essência das vivências de quem está mergulhado naquele universo. Você acha que Urubus consegue traduzir de maneira potente o que é o mundo da pichação?
Mesmo com todo o cuidado que tomamos, eu tive muito medo de cometer pequenos deslizes que deslegitimassem o filme. Tive receio até de mostrar o filme para o Djan a primeira vez. Mas assim que acabou a sessão, ele me disse: “Claudio, você entendeu a essência da pichação e o filme é mais uma peça do movimento”.
Depois, na sessão que abriu a 45° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, no vão do MASP, o filme foi legitimado de vez. Foi incrível! Histórico!
Uma coisa que chama atenção em Urubus é o bom desempenho do elenco que mescla atores profissionais e amadores. Como foi a escolha desses atores, sobretudo, os amadores?
Noventa por cento do elenco é de não-atores. Isso foi, desde o início, uma meta e quase que uma condição. Todos os personagens pichadores tinham de ser pichadores de verdade.
O processo de escalação foi muito difícil e tumultuado, porque aconteceu durante a prefeitura do Dória, que havia declarado guerra aos pichadores. Todos eles achavam que o casting era um golpe da prefeitura para cadastrar pichadores.
Fátima Toledo está na preparação do elenco. Ela seguiu o mesmo processo usado, por exemplo, no filme Cidade de Deus?
Provavelmente não. Há uma distância de quase 20 anos entre um filme e outro, é provável que o método dela tenha evoluído, não sei. Essa é uma pergunta que só ela pode responder. O que eu sei te dizer é que ela foi fundamental.
Gustavo Garcez, que interpreta o protagonista Trinchas, é ator amador e pichador, Como se deu sua escolha?
Nosso tempo de casting já estava esgotando, o elenco estava completo e pronto para começar a preparação, mas ainda não tínhamos o Trinchas. Quando o Gustavo apareceu e fez os primeiros testes, nós já sabíamos que era ele.
O universo do pixo é muito masculino e o filme reflete isto. A presença da personagem estudante de arte, Valéria, além de ter um papel relevante no desenvolvimento da trama, foi uma maneira de inserir o protagonismo feminino na narrativa?
O universo dos pichadores já não é mais tão predominantemente masculino. Na época que o filme retrata eram poucas as pichadoras, embora algumas já se destacassem. A Valéria sempre fez parte da história, como pichadora. Nos últimos tratamentos, uma sugestão do Djan trouxe a ideia da estudante de arte, porque há algum tempo vem acontecendo o interesse do mundo acadêmico pela pichação.
Como Fernando Meirelles, produtor executivo do filme, você tem uma carreira como diretor de filmes publicitários. Na época do lançamento de Cidade de Deus, essa condição de Meirelles chegou a ser criticada e até a se cunhou a expressão “cosmética da fome” em oposição a “estética da fome” do Cinema Novo, pelo acabamento e refinamento visual do filme. Você acha que esse olhar redutor, por parte da crítica, mudou?
Quanto ao olhar da crítica eu não tenho certeza, mas desconfio de que nada tenha mudado. Já o olhar do mercado ainda é bastante redutor. Ainda se olha para diretores com o meu background de cima para baixo. Mas eu acho engraçado, porque não se fala do Ridley Scott, do David Fincher, do Alejandro Iñárritu ou do Jonathan Glazer. Estranho… Pode ser um vício brasileiro.
Na elaboração audiovisual de Urubus, percebe-se um refinamento na fotografia, na montagem e na trilha sonora. Como se deu a construção estética de Urubus em termos de linguagem e quais influências ele teve com relação ao audiovisual contemporâneo?
Urubus não teve influência direta de nenhum filme específico, mas eu tive muita influência do cinema inglês, que é um cinema cru, realista e ao mesmo tempo cinematográfico que eu gosto muito.
Conceitualmente, a pichação acontece nas sombras e na noite. É crua, e suja. Ela não poderia ser retratada de forma clássica. Isso seria enfeitar demais o bolo.
O refinamento que você vê na fotografia talvez venha da escolha das lentes e das cores, mas eu tenho certeza de que vem do velho e bom “menos é mais”, porque eu desconfio que nenhum filme brasileiro usou tão pouca luz em sua execução. Não só por uma decisão de conceito, mas também muito por limitação de orçamento. Aliás, é legal esclarecer que nem eu nem o Ted nem nenhum de nós teve o privilégio de parar as nossas vidas para fazer Urubus. Aconteceu nas nossas brechas.
A linguagem, a trilha sonora e a montagem, são onde eu me revelo e estou por inteiro. São a minha identidade cinematográfica.
É muito interessante a oposição espacial que se estabelece no filme entre a periferia e o centro da cidade de São Paulo. A periferia é o dia, a vida cotidiana dos jovens com suas inquietações e dificuldades; o centro é a noite, a aventura, em que esses mesmos jovens se transformam em criaturas anônimas marcando suas existências por meio de desenhos. Dessa forma, as ações dos pichadores acontecem à noite. Esse elemento foi muito bem explorado em todo o filme. São também os momentos mais tensos e empolgantes da história, sobretudo, pelo que eles retratam – o risco de escalar edifícios e a violência nas lutas entre grupos de pichadores e nos confrontos com a polícia. Quais os principais desafios para realizar essas sequências e conseguir os bons resultados que vemos na tela?
Um dos desafios está respondido na pergunta anterior: a quantidade de luz a ser usada influencia diretamente no tamanho da equipe, que influencia diretamente no tamanho do orçamento.
Eu me beneficiei muito da minha experiência vinda do cinema publicitário: o fato de ter filmado muito, filmes de todos os tamanhos com todos os graus de dificuldade, ajudou a filmar rápido, pequeno, ágil, mantendo a maior qualidade possível.
O frio da madrugada foi, sem dúvida, um desafio. E manter o foco em noturna é sempre mais difícil. Fora isso, os enquadros que a polícia deu no elenco por seis vezes. No último dia até eu fui enquadrado.
E para finalizar: você tem algum novo projeto de longa-metragem em vista para breve?
Sim. Estou envolvido desde a metade do ano passado neste projeto. Muito ansioso e muito feliz. O que eu posso dizer é que vai ser meu primeiro filme no mercado americano.
Leia mais entrevistas:
- De fotógrafa a finalista do Drag Race Brasil, Betina Polaroid celebra as cenas drags pelo país
- Kátia Mesel é homenageada no Janela de Cinema: “Minha obra estava adormecida, e agora está pronta para o mundo”
- Um papo com Angela Ro Ro: “Tenho muito amor à vida”
- Um papo com Bianca Del Rio, em turnê no Recife: “Se você me deixar falando sobre política americana eu nunca vou calar a boca”