As chamas levaram a alma de Zé Celso para o encontro de Hades. Discípulo fiel de Dionísio (ou Baco para os romanos), nesses tristes e alegres trópicos chamado Brasil, Zé Celso viveu, como ninguém, através do teatro, a experiência dionisíaca. Caminhou pelas ruas e pelos palcos em cortejos regados a vinho e poesia, espalhando o caos e, ao mesmo tempo, o êxtase divino. Colocou e tirou máscaras, viveu como uma bacante e invocou a crueldade de Antonin Artaud, devorando-a pela antropofagia de Oswald de Andrade. O seu Teatro Oficina Uzyna Uzona é uma trajetória ímpar no teatro brasileiro.
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Ninguém como Zé Celso, nesse país, vivenciou a experiência cênica com tanta liberdade e de forma tão visceral. Ao encontrá-lo em suas montagens, fosse trabalhando com ele como ator ou simplesmente como espectador, ninguém saia ileso. Ele foi essencial no movimento de contestação das convenções teatrais, entre elas a ruptura da relação tradicional entre cena e espectador, abolindo a divisão entre palco e plateia e a implementação de um jogo criativo e interpessoal.
O seu trabalho explorou o convívio de pulsões de ordem sensorial, mas sem perder de vista princípios da encenação desenvolvido por mestres do teatro como Bertolt Brecht e fazendo do ato de performar um ponto de reflexão para as questões sociais e políticas do Brasil. Por sua ousadia e contestação ao regime militar, por exemplo, foi perseguido e censurado, mas isso nunca o impediu de se renovar. Sua trajetória artística foi sempre marcada pela inquietação e por um processo constante de reconstrução.
Eu, como tantos, de minha geração, cruzei com Zé Celso algumas vezes. A primeira foi assistindo o deslumbrante filme O Rei da Vela (1982), dirigido por ele e Noilton Nunes, realizado a partir da montagem da peça teatral de Oswald de Andrade encenada pelo Oficina em 1967 e que revolucionou a cena nacional. Pouco tempo depois, pude ver no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, em dezembro de 1985, uma leitura encenada do texto, também de Oswald, O Homem e o Cavalo. A leitura se transformou num ato público com o palco e a plateia se unindo numa ação ao mesmo tempo artística e política.
Após uma pausa sem montar espetáculos, o Oficina voltou à cena em 1991, com a montagem de As Criadas, de Jean Genet, que excursionou pelo Brasil e foi apresentada no Recife, no Teatro do Parque. Ainda lembro da longa jornada do espetáculo que adentrava pela madrugada, mas cujo impacto provocado foi inesquecível com a interpretação dos atores, ritualística e estilizada, explicitando as tensões entre a ficção e o real, a representação e a política e as classes dirigentes e o povo.
Mas o espetáculo do Oficina que mais me fascinou foi, sem dúvida, As Bacantes, que pude ver na sede do Uziyna Uzona na rua Jaceguai, na Bela Vista, em São Paulo. Participar de uma apresentação da tragédia de Eurípedes em forma de festa pública foi uma das experiências mais fascinantes que o teatro me proporcionou. O espaço cênico, formado por um longo corredor e arquibancadas, transformava o público em participante, convidado a participar de um ritual dionisíaco onde o próprio deus é o narrador. A montagem mesclava o texto de Eurípedes com a história do próprio Oficina e dos atores em cena, estimulando no espectador, por meio da excitação corporal, uma presença sensorial na encenação.
A última vez que pude compartilhar uma experiência com o Oficina foi de novo no Recife, quando ele trouxe para o Nascedouro, em Peixinhos, o espetáculo Os Sertões, inspirado no livro de Euclides da Cunha. A recriação da saga de Canudos tinha como elemento autobiográfico a luta do próprio Zé Celso e do Uzyna Uzona contra o Grupo Silvio Santos, uma disputa que se arrastou por mais de 40 anos. O terreno onde o teatro está erguido pertence ao conglomerado de empresas do famoso apresentador de TV que quer construir um shopping center na área. Zé Celso partiu e o imbróglio não foi resolvido.
A morte súbita de uma pessoa tão especial e fundamental para as artes no Brasil nos deixa tristes, mas o espetáculo continua e vamos continuar lembrando de José Celso Martinez Corrêa pelo seu legado e por suas palavras: “o teatro é uma celebração da vida, uma manifestação coletiva que nos lembra da nossa humanidade compartilhada”. E aqui nos solidarizamos com o Oficina Uzyna Uzona que postou na sua página do Instagram: “Tudo é tempo e contratempo! E o tempo é eterno. Eu sou uma forma vitoriosa do tempo. Nossa fênix acaba de partir pra morada do sol. Amor de muito Amor sempre”.