Este texto foi publicado originalmente no Lampião da Esquina nº 18, em novembro de 1979 e republicado aqui com a permissão do autor.
A cidade de maior densidade demográfica do Brasil, com 5.076 habitantes por quilômetro quadrado. Uma criança morrendo a cada hora – 70% dos óbitos infantis provocados por desnutrição na faixa de 1 a 4 anos de idade, 54,6% da população ganhando de ¼ a 1 salário mínimo. 70% das casas em condições subumanas de mocambos, daí seu apelido sociológico de Mocambópolis. Essa cidade tem um outro nome: Recife.
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Pasmo, um viajante sulista escreveu em seu diário: “Não sei como é possível viver no Nordeste fora dessas duas possibilidades: morrer de fome ou enlouquecer (de dor, de sentimentos de culpa, de êxtase?). Aqui, as pessoas se vulnerabilizam mais no amor, nas paixões. Talvez por essa fragilidade geral”. E, no entanto, as risadas brotam amplas, os olhares agudos: o desejo fervilha lado a lado com a miséria. Se a fome é exacerbada, são exacerbados também os sentimentos: ali, a maior prova de amor é matar por ciúmes.
No caminho de Olinda, os próprios atores construíram o teatro do Vivencial Diversiones: um barracão improvisado com paredes de pouco tijolo, muito pano cobrindo buracos, chão de cimento rústico e mesinhas minúsculas; do telhado sem teto descem lustres esféricos espelhados que enchem o local de reflexos mágicos. Luxo-lixo. No meio dos mocambos, pequenas multidões de classe média superlotam o teatro. Aí reside sua maior contradição: o sucesso, que garante a continuidade de trabalho, só foi possível graças ao público que pode pagar ingressos relativamente altos.
Mas não há dúvida que se trata do espetáculo mais vibrante da cidade, quase ininterruptos das 9 da noite às 2:30 da madrugada: uma peça, danças, dublagens, um palhaço pornográfico, grupos de música, strip teases e números humorísticos – tudo regado pela total esculhambação. É perplexidade, como quando o ator Roberto (ou Pernalonga ou Grace Flórida) se coloca no meio do público e dá o seu depoimento: “Quando eu nasci, um anjo torto desses que vivem nas sombras disse: Vai Roberto ser guei na vida”. Enquanto ele prossegue, parece que o próprio Vivencial está se exorcizando através de sua voz: “Sou aceito pelo folclore que faço e porque traduzo em atos o desbunde que está enrustido nas pessoas. O homossexual ainda é um objeto de adorno: quando somos bem aceitos, não é por abertura não, mas porque fica bem ter uma bicha sempre à mão, para animar festinhas e reuniões íntimas. Mesmo quando sirvo a isso, estou consciente”.
Sexta-feira à noite, o local regurgita. Muita gente volta para casa sem conseguir ingresso. De 150 a 200 pessoas abarrotam o pequeno espaço, prestando atenção a alguém que fala pelo microfone. Por entre as cabeças, posso ver lá no canto do palco o diretor-geral do grupo, Guilherme Coelho, rapaz miúdo, loiro, cara de fauno: “Estas bonequinhas que apresento aos senhores são cópias exatas de nossas três Dancing Gays, que tão gentilmente lhes vendem chocolates, cigarros e revistinhas educativas com posições ótimas. Esta aqui é Grace Flórida, esta a Luciana Luciene e esta a Lee Marjories. Comprem as bonequinhas, elas têm uma função pedagógica: é para os garotinhos irem aprendendo desde cedo a brincar com bonecas”. Risos gerais.
Vou até o camarim, procurando não escorregar no barro do lado de fora. Entro num cômodo igualmente improvisado, cheio de armários, sacos de cimento e tralha de todo tipo. Há pelo menos umas 15 pessoas indo e vindo, arrumando-se, gritando, enfrescando: o espetáculo começa ali. “Quem me dá um cigarro?” “Olhe, frango, vê lá onde guarda assa sandália.” “Meu batom, quem pegou o meu batom?”. Poucos ali pisaram em um palco, antes do Vivencial; poucos terão mais que o curso ginasial. Apesar da desarrumação, o ambiente respira responsabilidade. Alguns atores disputam um pedaço do único espelho grande do camarim: “Ô veado, sai da frente que eu vou entrar daqui a pouco e preciso me maquilar”. Walter, um jovem negro, pinta grandes olheiras escuras e passa batom preto; logo mais entrará sassaricando no palco, para dublar Zezé Mota. Junto ao espelho, uma garrafa onde se lê “Cocaína liquida”. Num canto, Américo coloca purpurina azul em torno dos olhos; tem algumas penas de pavão espetadas no cabelo afro e vai entrar no palco dublando esplendorosamente Maria Alcina, tornada ainda mais picante.
Américo reclama que está com a cara feia. Marquesa, muito entretida na própria maquilagem, acha que não, está linda: “Tu vai arrasar, rapariga”. Beto Hollywood, meio homem meio mulher, como aliás todos ali, puxa para um lado seus longos cabelos anelados, prendendo uma rosa de crepom junto à orelha; veste-se de rumbeira, mostra-se agitado: “Ai gente, será que ontem foi bom?” E Américo, irremovível: “Foi ótimo, menino. Você foi ótima.” A pessoa mais tranquila ali é Juraci, a única mulher do espetáculo, que está passando creme escuro para as pernas parecerem bronzeadas; ela faz dois strip teases no show, um primeiro sem tirar a calcinha, o que acrescenta uma incrível ambiguidade à sua figura mignon – afinal, o que não é ambíguo neste espaço?
Guilherme aparece preocupado com Andrea, que está atrasada. Num canto do cômodo, Petrônio arruma-se com dificuldade, porque cortou o pé; trata-se de uma das mais brilhantes figuras do grupo, um rapazola de 22 anos, com um rosto onde se misturam olhos tristes e um sorriso profundamente sedutor, quase sacana. Petrônio só entra em cena para curtir seu cinismo e se exorcizar. A cada noite improvisa novas fantasias para seus quadros; durante os sete meses do espetáculo, raramente entrou no palco com um figurino repetido. Apanha coisas encostadas, arranja trapos, traz material da rua; e cria com o mais puro lixo: de repente, tem um velho sapato de mulher na cabeça, caído languidamente junto à orelha, calça sapatos diferentes em cada pé; coloca estrategicamente ora uma rosa vermelha de pano, ora uma boneca vermelha, ora um chifre bem no meio das pernas. Uma vez eu o vi entrar no palco todo enrolado em papel, como um bolo branco e fofo. Outra vez apresentou-se com um paramento de missa e uma mitra episcopal na cabeça; virou-se de costas para o público e mostrou a bunda nuinha.
Suas entradas em cena são graves e pomposas: nenhum cafajeste encararia o público tão bem quanto ele; faz poses exacerbadas de vedetismo e, ao contrário das travestis, esculhamba como pode; ante o silêncio da plateia, sussurra então a palavra mágica; por exemplo: “Rosa”; e se retira. As cenas que representa são em geral pequenos quadros surrealistas onde uma bicha-fechativa (ele próprio) é insistentemente paquerada por um bofinho que termina por agarrar-lhe o sexo com avidez.
Mas agora, Petrônio se pinta sem entusiasmo, riscando o rosto a esmo, com traços grossos que descem dos cantos da boca ou cruzam os olhos em vários sentidos. Como se não bastasse o corte no pé, amanheceu com os olhos inexplicavelmente inchados. Lara, o único ator ali que pretende fazer operação transexual, vem chegando para examinar Petrônio de perto: “Menino, que é isso aí no olho?” “Petrônio: “Um bofe. Comeu e depois deu porrada.” Lara: “Mas então você adorou. Pra quem gosta de apanhar…”
Nunca sei quando falam a sério ou fantasiam. Petrônio desabafa: “Faço o gênero mulher-punk. Hoje sou punk-molambo, mas um dia vou fazer o punk-luxo. Como aqui só tem lixo, faço a linha punk-horror. O horror da vida.” Olha em volta; com ar cansado, mas fulminante, pontifica: “Isto é uma decadência igual minha vida. Parece que nunca vai melhorar.” A família andou botando polícia atrás dele, por causa de suas companhias. Entretanto, Petrônio está sempre acompanhado de uma garota calada: sua namoradinha, sentada ali junto dele.
Nessas circunstâncias, ele não gosta nada quando vê três policiais entrando no camarim. O rebuliço é geral, com gritos e festa. Marquesa corre para o mais rechonchudo, olha gulosamente para sua mala e sibila, entre sedutora e lânguida: “Oi querido, como vai essa força?” É um momento em que a frescura geral transborda. Luciana entra tropeçando nos guardas; diz que veio retocar a maquilagem. Vem rebolando em cima do sapato de salto agulha. Antes do show, eu a encontrei ainda como Luciano, de calças Lee e lindíssimos cabelos loiros compridos e encaracolados (seu maior orgulho), os braços, entretanto peludos – é para encobri-los que está sempre usando longas luvas enquanto trabalha como baleira. A transformação de Luciano em Luciana é um esmerado ritual donde brota essa criatura de bunda generosa, andar felino, juba loira, maiô negro-brilhante e um eterno muxoxo à guisa de boca fatal. Ao contrário de Luciana, Marquesa (ou Marcos Kesa, segundo ele) veste-se com roupas femininas, mas faz a linha deboche; gosta de mostrar seus sovacos, braços e pernas exageradamente peludos dentro do vestido, pulseiras e meia-arrastão. Não demora chega Andrea (sobrenome Coccinelli, em homenagem a uma travesti francesa que teria sido Miss Universo, segundo me consta). Já vem travestido; aliás, é dos poucos ali que vive profissionalmente como travesti; chega escondendo o rosto, desolada; só Guilherme consegue descobrir que o rapaz está com a cara inchada devido a um dente inflamado – e por isso, se recusa a entrar em cena. Andrea tem 18 anos e um público de senhores madurões que lhe dão cantadas, dinheiro e roupas.
Como já começa a tocar a canção de abertura, volto para o teatro, por entre as pessoas aglomeradas: Petrônio tem um duelo cênico com Marquesa, ambos disputando a primazia de anunciar o show. Finalmente, Petrônio fica sozinho no proscênio e repete em várias línguas, atravessadamente: “E agora leidis andi gentelman, Bonecas falando para o mundo. Ou também (enfatiza) Frangos falando para o mundo.”
O público urra. Já aprendi que no Recife “frango” é um termo extremamente pejorativo para caracterizar uma bicha. Espocam flashes de fotógrafos anônimos. O público antes impaciente começa a se soltar, depois de estar assobiando para o conjunto de rock que precedeu o show das bonecas. Pode parecer estranho, mas a maioria dos casais ali presentes está matando uma heterossexual vontade de ver travestis; chegam em grupos de homens ou com namoradas; afinal, “é uma diversão diferente”, diz um deles sem me convencer. Marquesa volta a atacar, com sua mistura homem-mulher. Entra em cena com um verdadeiro discurso sexo-político: “Eu sou da Ó-posição, mas da Ó-posição incômoda, porque a oposição neste país já faz parte da situação.” Mete-se pelo meio do público e entrevista as pessoas sobre suas posições prediletas na cama: o quadro é hilariante, graças sobretudo à presença de espírito do ator; a plateia ri, teme, entra no jogo. Marquesa sai de cena cascateando frases mirabolantes: “Eu não sou eu. Eu sou as minhas circunstâncias.”
Agora Celi Bee (que costura as roupas do grupo) apresenta uma cena com Lara, inspirada em Genet; ele faz uma empregadinha tirana que vive atormentando a patroa granfina; para esnobar, a patroa batiza o seu novo penteado com o nome de “fim de transa à beira mar”. Após uma cruel dublagem de Janis Joplin drogada e bêbada, Celi Bee volta ao palco, sempre varrendo; encontra uma seringa no chão, apanha-a e com falso ar de horror diz para a plateia: “Gente, pico mata! Bom mesmo é pica”. A plateia gargalha. Andrea entra dublando Dalva de Oliveira em Abajur Lilás; resolveu o problema do inchaço com um leque de pena de pavão que lhe esconde parcialmente o rosto. Depois, volta Petrônio, com uma desmesurada cabeleira de palha roxa e rosa, dublando London, London em rotação acelerada e apresentando-se como Gal Costa. O encerramento do espetáculo acontece com um strip tease conjunto de Juraci e Andrea; a mulher e a travesti fazem a revelação corriqueira mas poética: ficam ambos totalmente nus, dão-se as mãos de costas e vão girando de modo a mostrar claramente suas diferenças anatômicas. Há um silêncio de ós engolidos.
São quase 2:30 da madrugada. Certos homens, já histéricos de bebedeira, melosamente perseguem os atores. Um senhor com esposa, dois filhos e respectivas namoradas, retira-se satisfeito. Sem dúvida, a família recifense continua bem protegida. Mas também é verdade que até o ano passado, quando ainda não tinha o seu barracão, o Vivencial dificilmente encontrava espaço para apresentar os seus trabalhos marginais; eram acusados de comunistas por uns e de bichas por outros. Hoje, seu espetáculo mantém-se em cartaz há pelo menos 7 meses, fato raro no teatro local. Teriam mudado os tempos ou o consumo?
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