Dar visibilidade e resgatar a história de personagens relevantes da cultura em Pernambuco é sempre algo digno de ser exaltado, sobretudo nomes como o do ator Roberto de França, mais conhecido como Pernalonga. Além da sua contribuição nas artes cênicas, Perna, como era chamado pelos mais íntimos, com sua irreverência e autenticidade, marcou a cena LGBTQIA+ de Olinda e Recife e, merecidamente, tem sua vida retratada no livro Pernalonga, uma Sinfonia Inacabada de autoria do jornalista Márcio Bastos.
A obra será lançada nesta sexta (13), na Bienal do Livro de Pernambuco, no Centro de Convenções, em Olinda.
Fruto de uma extensa pesquisa e entrevistas com amigos, artistas e familiares, Pernalonga retorna até nós por meio de uma escrita delicada e sensível que busca dar corpo e alma a uma figura cuja existência não pode ficar apenas na lembrança de quem o conheceu ou nas páginas amareladas de jornais arquivados.
Sabemos o quanto é difícil esse tipo de empreitada, Bastos, porém, encantado com as descobertas em torno do seu personagem, atravessou o labirinto das memórias com determinação e nos deu uma obra literária valiosa. Ele conversou com O Grito! e conta como foi essa aventura.
O Grito! – Escrever biografias faz emergir no biógrafo um misto de admiração e fascínio pelo biografado na medida em que o autor passa a conviver, por um longo período, com as memórias e histórias desse personagem. Como foi essa experiência na elaboração desse trabalho sobre Roberto de França/Pernalonga?
Márcio Bastos – De fato, a pesquisa cria uma relação de muita proximidade com o biografado. É um processo intenso, de descoberta não de uma, mas de várias facetas de um indivíduo; um lembrete da complexidade de todos nós. Infelizmente, como não havia a possibilidade de ouvir a história de Pernalonga a partir de suas próprias palavras, precisei me aproximar dele pelos registros da imprensa e, também, através das memórias daqueles que conviveram com ele: família, amigos, companheiros de trabalho. A cada narrativa que colhia ficava mais fascinado, pois me deparava com um personagem esférico, corajoso, sensível e demasiadamente humano.
Que tipo de relação você vivenciou com o personagem Pernalonga durante a pesquisa e a escrita?
O processo foi de encantamento e admiração. Conhecia pouco sobre ele antes de iniciar o processo de pesquisa e escrita. Assim como muitas pessoas, sabia da sua importância, mas não tinha dimensão do quão complexa era sua figura. Pernalonga desafiou todas as convenções sociais da época e abriu espaço para que debates necessários fossem pautados. E tudo isso sem proselitismo. Sua militância estava na sua vivência – e isto teve um preço que ele bancou. Foi fiel a si até o fim. Despertava muitos amores, por vezes criava algumas indisposições, mas seu carisma e talento sempre prevaleciam.
Essa relação passou por um processo de evolução e alterações da percepção sobre quem era Pernalonga e o que ele representou?
Pernalonga me surpreendia a cada nova descoberta. Mesmo quando me deparava com facetas um pouco mais controversas, me sentia mais apegado e instigado pelo personagem. A sensação sempre foi a de que estava diante de uma esfinge: Pernalonga era amigável, expansivo, afetuoso, se abria para todos, mas ao mesmo tempo parecia preservar um mistério sobre si. Muitas vezes ele teve declarações contraditórias, algumas das quais deve ter se arrependido, mas, ao invés de depor contra ele, esse aspecto parece reforçar sua personalidade multifacetada.
Como você mesmo assinala na introdução do livro, você se deparou com diferentes versões sobre episódios da vida de Pernalonga e com fabulações que se criaram sobre ele. Quais as maiores dificuldades enfrentadas em termos de levantamento de dados, informações e histórias sobre Pernalonga?
A primeira dificuldade foi a da escassez de material. Ali pelo final da década de 1970 e começo dos 1980, ele era presença constante na imprensa local, mas depois os registros se tornam raros. É difícil encontrar material da década de 1990, por exemplo, que mostre como ele estava nesta fase da vida. Outra questão é o tempo desde sua morte. Já se passaram 23 anos e muitas pessoas próximas a ele guardam lembranças afetuosas, mas por vezes difusas. Tenho a impressão de que, com o tempo, também se cristalizou uma imagem mais icônica dele, o que dificulta o acesso às miudezas das relações. Me interessava, para além do artista, conhecer mais da pessoa. E esse foi um trabalho de investigação mais sensível. Por sorte, contei com pessoas muito dispostas a celebrar e compartilhar suas experiências com Roberto de França.
A escrita de uma biografia impõe desafios e decisões para o autor do texto. Recortes devem ser feitos na vida do personagem, é preciso definir as elipses temporais e o fluxo narrativo e, também, preencher lacunas da sua trajetória. Quais as principais escolhas que você fez diante de um personagem como Pernalonga cuja trajetória é repleta de muitos fatos marcantes, reviravoltas na vida íntima e que, ao mesmo tempo, participou de um momento muito significativo do teatro pernambucano?
Este livro faz parte da coleção Perfis, da Cepe Editora, que celebra as contribuições de figuras importantes da cultura pernambucana. Os outros personagens deste projeto, em sua maioria, estavam vivos e puderam contribuir com a pesquisa, o que é um presente para qualquer biógrafo. No caso de Pernalonga, foi complicado me deparar com várias versões sobre alguns fatos que se contradiziam e que não tinham possibilidade de verificação. O próprio Pernalonga chegava a contar a mesma história de formas diferentes. Busquei ouvir o máximo de pessoas e, quando não era possível comprovar uma história (datas, locais etc.), optei por apresentar as diferentes narrativas sobre o fato, como no caso de sua morte. Um ponto que eu gostaria de ter mais conhecimento, e espero que haja oportunidade para isso, seja através das minhas pesquisas ou das de outras pessoas, é sobre o companheiro dele, Paulinho, do qual sabemos muito pouco. Várias pessoas lembram dele com carinho, mas não sabem informações sobre sua vida, família etc. De forma geral, meu principal objetivo foi oferecer um retrato com mais nuances e reforçar a importância de Pernalonga para a cultura pernambucana. Creio que ele precisa ser ainda mais celebrado, não só no âmbito local, mas também nacional. Se Pernalonga fosse do Sudeste, talvez fosse hoje um dos maiores ícones LGBTQIAP+ do país.
Um aspecto interessante de seu trabalho é a reconstituição do ambiente e do contexto cultural, sobretudo da cidade de Olinda nos anos 1970 e 1980. Em que medida você acha que esse ambiente forjou a personagem Pernalonga? Roberto de França seria Pernalonga se estivesse em outro local?
Creio que o ambiente foi essencial para forjar o personagem Pernalonga. A efervescência cultural de Olinda na década de 1970, com artistas estabelecendo uma grande comunidade cheia de vontade de experienciar a liberdade em oposição à caretice e às atrocidades da ditadura social, propiciou o cenário perfeito para alguém que sonhava em ser livre. E uso a palavra livre em todos os aspectos: individuais, coletivos, sexuais, políticos etc. É difícil falar o que teria acontecido se Roberto de França não tivesse encontrado seus pares do Vivencial e do teatro, de forma geral, mas creio que a história seria completamente distinta. Pernalonga encontrou o terreno fértil para se desenvolver como pessoa e como artista e soube agarrar as oportunidades para lapidar-se e tornar-se essa figura quase mítica que virou um símbolo da cultura e da boemia pernambucana. Um aspecto interessante era o fato de, apesar de ser do teatro, ele dialogar com artistas de várias linguagens, como música e cinema. Ele era muito inquieto e creio que, se tivesse mais oportunidades, teria brilhado ainda mais. Digo isso porque percebo que, em alguma medida, ter optado por ser tão fiel a si fez com que ele também fosse visto por certos setores sem o devido reconhecimento. Havia quem achasse que ele era “difícil” ou pouco comprometido com a sua arte e, por isso, certas portas foram fechadas. Acho que ele se ressentia um pouco disso, mas preferiu não abrir mão de ser 100% Pernalonga.
O resgate de personagens transgressores que romperam com os padrões e anteciparam muitas das lutas da comunidade LGBTQIAP+ é muito relevante para os dias de hoje. Pernalonga foi um deles, no teatro e na vida. No seu livro vamos encontrar um artista inquieto e uma criatura que vivia seus desejos e sua bissexualidade com intensidade, numa época ainda de muita repressão e preconceito. Qual o personagem que te impressionou mais: o ator ou a pessoa Roberto de França?
Difícil dizer, pois acho que, em algum momento, o artista e a pessoa se fundiram tão intensamente que se tornou difícil para muita gente diferenciar. Creio que, em algum momento, para mim também. Porque Roberto fazia da sua vida também uma performance. Uma lembrança recorrente das pessoas era a intensidade da sua risada, a forma como ele chegava nos lugares e comandava as atenções para si. Era uma pessoa magnética, sensual e, ao mesmo tempo, sensível, brincalhona, descrito por muitos como um menino. Um menino que não se contentou em obedecer às regras de gênero, burlando as expectativas e bagunçando o que era entendido como aceitável ou respeitável. Era um libertário, ao mesmo tempo em que podia dar declarações altamente retrógradas. Essa contradição me fascinou, como pesquisador e escritor, porque me manteve sempre em estado de descoberta. Como falei anteriormente, ele era um enigma para mim. Continua sendo. Acho que o título do livro, que foi retirado de uma peça dele, captura bem essa essência: uma sinfonia inacabada. Confusa e bela.
Na sua opinião qual a principal contribuição ou legado Pernalonga deixou para as artes cênicas em Pernambuco e para os movimentos em defesa da diversidade?
Para o teatro, Pernalonga deixou como legado o compromisso firme com a arte. Ele era um ator talentoso e dedicado e não queria ficar marcado só pela experiência do Vivencial. Ele investiu na sua arte, buscou financiamento, tentou montar espetáculos mesmo quando não havia o suporte para isso. Roberto fez parte de uma cena que funcionava de forma independente e as dificuldades foram enormes. Então nunca foi sobre fama, dinheiro etc. Sempre foi por amor e compromisso com o fazer artístico. Seu papel para a comunidade LGBTQIAP+ precisa ser exaltado. Junto às vivecas, ele fez uma revolução na Região Metropolitana do Recife. Outro ponto crucial foi seu engajamento na conscientização e na luta contra o preconceito com pessoas vivendo com HIV. Ouvi muitos relatos de pessoas que assistiram aos espetáculos dele ou às palestras que ministrava em torno do tema do HIV/Aids. A coragem que precisou ter é impressionante, mesmo agora, em 2023, quando vivemos um cenário infinitamente mais acolhedor para as pessoas da comunidade. E, apesar disso, ele morreu vítima do preconceito e discriminação que tanto combateu. Em uma época de disputa intensa com forças reacionárias, resgatar o legado de Pernalonga é também lembrar de tantos e tantas que se engajaram em prol da transformação da nossa sociedade.
Lançamento do livro Pernalonga: Uma sinfonia inacabada (Cepe Editora)
Data: 13.10, sexta-feira
Hora: 19h
Local: Auditório do Círculo das Ideias – XIV Bienal Internacional do Livro de Pernambuco
Pernalonga – Uma Sinfonia Inacabada
Márcios Bastos
Cepe Editora, 202 páginas, R$ 50. [Compre]
Leia outras entrevistas
- De fotógrafa a finalista do Drag Race Brasil, Betina Polaroid quer tirar a arte drag do gueto
- Kátia Mesel é homenageada no Janela de Cinema: “Minha obra estava adormecida, e agora está pronta para o mundo”
- Um papo com Angela Ro Ro: “Tenho muito amor à vida”
- Um papo com Bianca Del Rio, em turnê no Recife: “Se você me deixar falando sobre política americana eu nunca vou calar a boca”
- Exposição individual de Romulo Barros apresenta totens da representação cultural brasileira e latina