Embora, aparentemente, tivéssemos a impressão de que estava tudo bem, quando se tinha 20 e poucos anos e o mínimo de noção do que estávamos enfrentando, a vida no Recife no período da ditadura militar não era um mar de rosas. Estudantes e trabalhadores presos ou desaparecidos, partidos políticos amordaçados, o medo de ser perseguido ao se denunciar casos de injustiça social, artistas e intelectuais exilados, filmes, músicas, espetáculos teatrais e livros interditados pela censura emolduravam o quadro sombrio da década de 1970.
Leia também: Vivencial por João Silvério Trevisan: frangos falando para o mundo
O surgimento, portanto, de um grupo teatral como o Vivencial foi uma lufada de ar fresco, rebeldia e transgressão, sobretudo para uma cidade cuja atmosfera cultural, antes do golpe de 1964, era diversa e inovadora, mas que de uma hora para outra, além da opressiva situação política, fora sufocada pela onda conservadora e provinciana das classes dominantes.
Com suas colagens de textos irreverentemente articulados para trazer para o debate questões tanto de ordem política, quanto estéticas e também de comportamento, os jovens artistas que compunham o Vivencial contagiaram quem navegava pela cena artística e intelectual fora do circuito da cultura oficial e dos feudos familiares – os Suassunas e os Freyres – do Recife e Olinda.
As performances provocadoras, as intersecções entre tropicalismo, chanchada e cultura de massa, o desbunde assumido desfazendo os limites de gênero e raça e o abraço aos excluídos e aos marginalizados, pretos, pobres, mulheres, bichas, travestis renovaram a cena teatral pernambucana cansada das higiênicas encenações do Teatro de Amadores de Pernambuco. As vivecas, como eram conhecidos os integrantes do Vivencial, não se acabrunhavam diante das contradições da época e nem se curvavam aos censores de plantão.
O Vivencial foi por isso, de certa forma, um catalisador, uma chama de inquietação que inflamou a cena alternativa local que, apesar do regime militar, encontrava brechas para exprimir-se em filmes feitos com as câmeras de super 8, em concertos de rock e na poesia marginal. Para quem, como eu, tinha 20 anos e estava despertando para experimentar e viver na pele os prazeres e as agruras daquele tempo, assistir uma encenação do Vivencial, acompanhar os happenings que eles faziam nas galerias de arte, as aparições performáticas nos filmes de Jomard Muniz de Britto e posteriormente, atravessar a lama dos aterros do bairro de Salgadinho para curtir as noitadas do café-concerto Vivencial Diversiones, era entrar em sintonia com o desejo de subverter as normas e de acreditar no trabalho coletivo como motor de transformação da sociedade.
Na república independente do Vivencial aprendemos a ler as entrelinhas dos discursos hegemônicos para questioná-los, aprendemos a aceitar o outro, o diverso, a não ter medo de assumir nossas sexualidades, a cantar, rir, dançar, transar sem culpa e a dizer “darling” para mostrar que ser careta não valia a pena.
Assinalar de forma festiva os 50 anos do nascimento do Vivencial é uma causa justa. Os traços da revolução cultural que o grupo provocou estão presentes até hoje não apenas nos registros em filmes, livros, trabalhos acadêmicos, mas na nova mentalidade que brotou em quem testemunhou a efervescência e inquietação da trajetória do grupo e a replicou. Essa capacidade de espelhar o sentimento de uma época e influenciar a dinâmica sociocultural de um lugar através da arte é uma potência que não pode ser menosprezada. Por isso temos que bater palmas aos que fizeram o Vivencial e torcer para o surgimento de movimentos semelhantes, pois as bestas do fascismo estão à espreita e precisamos combatê-las sempre.
Leia mais: Vivencial