Copia de Copia de Post Noticias 17
Elenco da peça em montagem anterior (Foto: Divulgação)

Um papo com o elenco de “Rinocerontes”: “essa ascensão da direita, do fascismo, sempre acaba nos atravessando enquanto artistas”

Adaptação do texto clássico de Eugene Ionesco vai ao Teatro de Santa Isabel e ilustra questões como desinformação e negacionismo

O dramaturgo romeno Eugene Ionesco (1909 – 1994) criou em O Rinoceronte um texto clássico. Uma história de 1959 que conserva até hoje sua crítica aos processos de massificação e que se torna ainda mais latente quando uma sociedade vive um processo de ascensão de sua extrema-direita, como acontece no Brasil hoje.

De maneira certeira, esse mal estar social é captado primeiro nas artes, e dentro desse contexto os artistas locais já mostram as análises de seu tempo com obras – ou adaptações delas – que ilustram para o público e o ajudam a processar dentro de si tudo o que vivemos, incluindo aquilo que passa despercebido. Nesse espírito, o grupo de teatro recifense Cênicas Cia de Repertório adapta o texto de Ionesco para o contexto brasileiro e tece suas críticas.

Rinocerontes, adaptação do texto de Ionesco pelo diretor Antônio Rodrigues vai passar pelo Teatro de Santa Isabel depois de uma resposta positiva do público em uma montagem do espetáculo no final de maio.

Sob os comandos de Rodrigues e sons da própria peça o elenco se prepara para um laboratório curto, e ainda sim muito efetivo, para trazer para si os personagens de gestualidade marcada e vozes bem plásticas – como o texto pede. Entre os grunhidos, gemidos e corpos se debatendo vão saindo os rinocerontes.

A Revista O Grito! foi ao primeiro ensaio da peça depois da última apresentação e conversou com o diretor e o elenco sobre a experiência com a adaptação e os sentidos que criaram na peça. Além do próprio diretor, a entrevista tem falas do protagonista do espetáculo, Fábio Queiroz, e seus colegas: Dudu Ramos, Gabriela Cicarello, Lucas Barreto e Mariama da Mata. Confira a entrevista na íntegra:

IMG 4704
Elenco durante o laboratório (Foto: Antônio Lira/ O Grito!)

Esse é o retorno da Cênicas ao Teatro do Absurdo desde 2001. Antônio, você estava aqui quando houve a primeira montagem com essa abordagem?

Sim, eu estava lá, sou sócio-fundador do grupo. Então, em 2001, quando montamos o grupo, a gente resolveu mergulhar em algumas vertentes do teatro. Quando entramos no Teatro do Absurdo, encontramos o autor francês Jean Tardieu e nós montamos “Um Gesto Por Outro”, foi nosso primeiro espetáculo e foi muito significativo para a gente. Desde então não abordamos mais o Teatro do Absurdo nesses 23 anos. 

E qual o primeiro contato que você teve com o texto de Ionesco?

Foi justamente na época de 2000, 2001, que estávamos levantando material para estudar o Teatro do Absurdo. A “Cantora Careca” foi a primeira que eu li. 

Foi sua a ideia de adaptar a peça?

De certa forma sim. Eu tinha pensando em trabalhar com Teatro do Absurdo, e aí durante o processo pedagógico, na época eles estavam dentro do curso, a gente começou a experimentar alguns textos de outros atores, e aí Ionesco foi quem arrematou mais a turma, principalmente Rinocerontes. 

Considerando todo o subtexto político desse texto de Ionesco, foi algum acontecimento específico que te fez perceber que essa história precisava voltar aos palcos e falar com as pessoas?

Não exatamente um acontecimento específico, mas tudo isso que a gente vê acontecer hoje em dia, principalmente como as fake news podem transformar e  manipular as massas. Acho que é nesse ponto que a peça toca, nesse lugar sensível. 

A gente vê já desde o Auto da Barca do Inferno que essa ascensão da direita, do fascismo, sempre acaba nos atravessando enquanto artistas, então sempre que a gente pode, dentro da nossa arte, ser uma voz a mais para denunciar, alertar ou comunicar o que a gente pensa e acredita, a gente coloca na arte. A arte serve como ferramenta forte de comunicação. 

Quando a gente toca nesse cerne, a gente vê o quanto a peça toca no sensível e quanto a gente tem que resgatar [a humanidade]. O que nos faz humanos são nossos acertos e nossos erros, nossas perfeições e imperfeições e encará-las faz parte de ser humano, de estar ali; entender que somos falhos e conseguimos transformar tanto a si como os outros. 

rinocerontes 2
(Divulgação)

Que paralelos você vê entre a transformação dos personagens em rinocerontes e acontecimentos sociais ou políticos atuais?

A peça é cheia de signos que a gente coloca para não deixar as coisas tão claras, mas, com certeza, sim. Essa onda de todos se tornarem rinocerontes, com um pensamento homogêneo, sem muita reflexão, deixando de pensar como humanos. Isso acontece na recente história do Brasil, a gente vê como a desinformação bate nas pessoas e as transforma. 

Fábio, o espetáculo funciona muito através da linguagem poética, com diálogos diferentes entrecortados. Como é operar com esse tipo de narrativa que funciona mais no “panorama geral” do que entre vocês mesmos?

Muito difícil [risos]. Muito difícil. Talvez uma das peças mais difíceis que já fiz, justamente por isso, sobretudo no começo. Esse começo deixa muito evidente o Teatro do Absurdo, de onde surgiu a peça, e vale ressaltar que essa peça foi uma das últimas obras do autor falando do Teatro do Absurdo, então o começo é esse um caos, um bate-bola já frenético e de repente surge um rinoceronte, então fica mais frenético. 

É bem complicado de fazer e quando funciona e a gente vê o espetáculo pronto é muito gostoso de participar. É um desafio para todo mundo que tá em cena, porque já é difícil fazer um bate bola quando se está em dois, três ou quatro, e a partir daí já vira uma bagunça, uma loucura, e faz parte. O Teatro do Absurdo trabalha com a lógica e com a “não-lógica” também, é abraçar esses dois extremos. 

O seu personagem, Berenguer, vive um processo de isolamento, sempre resistindo às mudanças que acontecem com todos à sua volta. Queria saber onde tu encontrou motivos para entender como esse personagem se sente.

Eu acho que todo ator ele entrega um pouquinho dele para o personagem e ele absorve um pouquinho do personagem pra ele, então o processo de construção do Berenguer foi quase terapêutico para mim também, em momentos da minha vida. Reconhecer falhas, aceitar falhas, aceitar a vida como ela se apresenta para a humanidade muitas vezes, então não só o processo político, mas o processo de autoconhecimento, porque, muitas vezes, o que a gente joga para fora e projeto no outro – como o rinoceronte que atropela todo mundo – vem de falhas da gente consigo, em entender aceitar coisas nossas.

Então, no momento que Berenguer fala sobre humanidade, tudo fez sentido para mim; tanto para Fábio como ator, como para Fábio que entende que o personagem quer falar para o mundo e sua sociedade de divergências políticas e tudo mais: no fim das contas existe a humanidade por trás de tudo isso e precisa existir. 

IMG 4707
Elenco e diretor no ensaio (Foto: Antônio Lira/ O Grito!)

Ionesco uma vez falou em uma entrevista que a comédia consegue ser mais trágica que o drama porque ela consegue mostrar mais do desespero da vida. Pensei nisso para perguntar como é fazer uma comédia que consegue ser tão crítica e falar de uma situação social que a gente sempre associa com a dor.

D: Eu acho que é um pouco da gente utilizar a arte para transformar o lugar da dor no lugar da beleza. Pegar uma mensagem tão importante e tão atual não só no Brasil, mas no mundo, em vários aspectos, e trazer isso em uma forma que seja mais acessível, através da comédia – que é muito mais fácil de atingir diversos públicos -, como também trazer isso de uma forma mais bonita, que não relembre tanto a dor, não toque tanto naquele ponto, mas, ao mesmo tempo, que passe uma mensagem forte.

Acho que isso é uma potência muito grande que a gente aprendeu a trazer essa construção dentro da gente, de trabalhar esses momentos, que passam muito dentro do corpo, da fala e tudo, para trazer uma coisa que é muito atual. Acho que esse foi um trabalho que ajudou a gente a entender o próprio texto e aí construir a partir disso.

M: Eu acho que a gente viveu isso muito recentemente. Eu sinto que ainda está no nosso corpo presente, essa dor, essa resistência, e por mais que essa seja uma peça do Teatro do Absurdo, mas nós vivemos um momento absurdo com políticas negacionistas, uma pandemia. É uma coisa que eu fiquei impressionada pensando “como é que pode? uma história lá de trás que se repete novamente”, então a gente vê que a história se repete, a cada década ela se repete.

A: A ascensão da extrema-direita é uma coisa que é cíclica, a luta contra o fascismo naquela época e agora o mundo luta contra isso, e acho que essa peça se torna importante a partir do momento que questiona e traz isso junto com outros atravessamentos na sociedade de hoje. 

L: Eu sou muito fã desse texto porque ele começa numa comédia muito insana, despretensiosa e leve, e aos poucos ele vai se aprofundando. Ele toma o seu [próprio] tempo. Então eu acho que quando a comédia fisga a pessoa pelo riso, pelo absurdo e pela coisa do extracotidiano, aos poucos a pessoa vai encontrando coisas que ela não esperava no início da peça, que é uma reflexão muito profunda.

As cenas no final são muito mais intimistas, densas – e isso é um desafio também, a gente sair dessa coisa leve e distraída para essa coisa mais densa -, mas aos poucos que você vai se aproximando, também é trazida essa questão da reflexão, da identificação, problematizar e perceber essa perda do cotidiano é difícil de lidar, e quando ela (a peça) começa com essa coisa cotidiana, do dia a dia, e aos poucos isso vai se perdendo, o público vai perdendo isso também, e isso provoca a dor no final. O público tá dentro dessa comédia, e vai perdendo isso junto com o texto e aí na dor e na resistência, o público respira junto.

A: Acho que o texto tem uma mensagem que, no fundo, a história que vai sendo contada tem até um viés pessimista. O que faz a diferença é que o humano resiste e o humano se aceita com suas imperfeições, aceita que isso faz parte da construção do ser humano, então vale a pena continuar lutando para ser humano. E aí é essa questão de não se deixar levar pela manipulação de massa. 

Estar com Rinocerontes lá é uma ocupação. Ocupar aquele lugar, que às vezes era só para privilegiados, e trazer todos os públicos e não só os selecionados. Abrir o Santa Isabel para todos os públicos

Como tem sido a expectativa de se apresentar no palco do Teatro de Santa Isabel?

M: Tenho o sentimento de como se fosse uma estreia. O Teatro de Santa Isabel é um teatro que a gente sabe que é histórico, muito bonito e que tem um público que acho que é muito mais [abrangente] do que os outros teatros, atinge vários públicos, desde criança, adulto adolescente, enfim, acho que é muito mais central. Então, para mim, eu tenho o sentimento de que é uma estreia. 

A: No geral, como diretor, a impressão que eu tenho é que a gente está no Santa Isabel como uma de ocupação, mesmo. Ocupar aquele espaço com nossa arte, que em uma época era tão difícil de se pisar; às vezes davam mais espaço para os artistas de fora do que para os artistas locais. Inclusive, na época que teve um aniversário [do Teatro] e teve a maior polêmica na cidade – não sei se você chegou a ouvir falar disso – porque na época, não lembro qual gestão era, mas a gestão lá não escolheu nenhum espetáculo local dizendo que não havia espetáculos daqui à altura do aniversário do Santa Isabel e chamaram uma peça de fora […], depois falaram que é porque não tinha nenhuma estreia, mas tinha sim, naquele ano, várias peças do teatro pernambucano que poderiam ocupar aquele lugar. A partir daí [a cena local] começou a ocupar cada vez mais, mas ainda é difícil. 

Estar com Rinocerontes lá é uma ocupação. Ocupar aquele lugar, que às vezes era só para privilegiados, e trazer todos os públicos e não só os selecionados. Abrir o Santa Isabel para todos os públicos, e acho que a ocupação é importante para um lugar que tem tanta representação para as artes aqui. 

L: Falando sobre isso, acho que é muito interessante a gente com essa peça, que fala muito do avanço do capitalismo, classicismo, fascismo e a ideia de que ainda existe – inclusive por parte da gestão do Santa Isabel – de que aquele é um espaço reservado para certas pessoas, peças ou públicos e acho que Rinocerontes tem essa proposta de quebrar isso também na própria história, na própria narrativa da peça. É muito significativo a gente mostrar isso, que a gente pode levar o teatro recifense, o teatro político, [que é] tão desafiador e louco, no melhor dos sentidos, e a gente colocar isso naquele palco é muito significativo. 

G: Essa fala de Toni me despertou um pensamento sobre a ocupação de novos artistas ali dentro. É uma geração nova, que tá na cena há um tempo, que vem buscando seu lugar, seu espaço, e a gente sabe que a maioria dessas pautas são dadas para espetáculos que a muita gente já conhece, que já foi acessado por todo mundo. Os novos artistas querem encontrar esse público, querem estar, também, presentes nesses lugares, então acho que também é uma ocupação de novos artistas, uma nova possibilidade, uma nova geração de pessoas querendo fazer teatro e resistindo com ele; mostrando que o teatro existe, sim, dentro do Recife muito bem posicionado e executado. 

É um espetáculo que foi fruto da finalização de um curto curso, mas estamos buscando, também, nosso lugar como profissionais e acho que fazer isso no palco do Teatro de Santa Isabel é mais um reforço dessa resistência, tanto de nós ex-alunos, artistas, e da classe inteira.