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Sueli Carneiro e Cida Bento durante a Feira do Livro. (Foto: Sean Vadaru/Divulgação).

Sueli Carneiro e Cida Bento: o Brasil que precisa ser dito

Autoras de referência para gerações de escritoras, pesquisadoras e feministas, intelectuais põem o dedo na ferida e tensionam as relações raciais no país

Sob a tenda principal da Feira do Livro 2023, evento organizado pela Associação Quatro Cinco Um e pela Maré Produções, em São Paulo, a filósofa Sueli Carneiro cravou: “é preciso politizar esse país na perspectiva antirracista, anticlassista e antissexista”. Nada mais potente do que as vozes das escritoras negras ali presentes em várias mesas, informando uma maneira emancipatória de apreensão do mundo. Sueli, lançando o seu já clássico Dispositivo de Racialidade (Zahar), e a psicóloga Cida Bento, autora do precioso O pacto da branquitude (Companhia das Letras), reafirmam o alcance da produção intelectual das mulheres negras, tanto quanto a práxis política do seu pensamento.

Sueli Carneiro é a autora da polêmica e mega explorada frase “eu, por exemplo, entre esquerda e direita, continuo sendo preta”, escrita há mais de 20 anos e que segue, segundo ela, sendo manipulada “de acordo com a conveniência de cada um”. Sempre pedagógica, ela se referia, à época, à tradição sociológica que instituiu duas matrizes teóricas para se pensar o Brasil: a do mito da democracia racial, ideologia que organizou a etiqueta das relações raciais no país, servindo de esteio para o acordo que Sueli explica na prática (“nós dizemos que não há racismo nesse país, e vocês pretos fazem que acreditam”); e a ideologia da luta de classes, que desconsidera a magnitude do problema racial no país.

“Eu pertenço a uma geração que teve como grande desafio a destruição do mito da democracia racial. O Brasil desenvolveu uma das formas mais perversas de racismo, porque ele é absolutamente mascarado, hipócrita”. Por outro lado, argumenta, se a questão de classe fosse totalmente explicativa da realidade do país, a hierarquia social seria mais democrática, com burgueses pretos, uma classe media matizada, e pretos e brancos distribuídos nas classes proletárias. Sueli fala sobre a concentração absoluta de poder e renda dos brancos no topo da pirâmide, apontando a persistência de mecanismos de exclusão da cidadania dos negros. “Além disso, há praticas consagradas de extermínio da nossa população, que conta com conivência de grande parte da sociedade. Precisa desenhar para mostrar que raça determina classe nesse país?”

O Brasil desenvolveu uma das formas mais perversas de racismo, porque ele é absolutamente mascarado, hipócrita

Sueli Carneiro

Sueli Carneiro diz que é preciso “politizar para potencializar” o ativo político da população negra no Brasil, defendendo a categoria sociológica que agrega os dois grupos de cor que o Censo define como pretos e pardos, praticamente homogêneos do ponto de vista social e econômico. “Os pretos e pardos que estão aloprando com essa conversa de colorismo precisam saber que os pardos são 47% da população brasileira e os pretos, 9,7%. Vamos chutar os pardos para lá e renunciar a nossa maioria populacional?”. Ela entende que as demandas por igualdade e equidade avançam na medida em que cresce a capacidade de tensionamento das relações raciais, mas diz que elas esbarram no esforço de manutenção dos privilégios da branquitude. 

Engrenagens de um sistema racista

É exatamente sobre esse movimento de preservação e transmissão de privilégios que Cida Bento traz à tona com o conceito de “pacto narcísico da branquitude”. Uma investigação acadêmica que teve início no trabalho que ela fazia como executiva na área de RH de uma grande companhia, lidando com a naturalização na contratação de profissionais de brancos para os postos de comando. “Quem era o cara que, só de olhar, já sabíamos que era o dono da caneta? Quais os perfis que carregávamos dentro de nós, porque é o que aprendemos no trabalho, na televisão, na sociedade?”. Ao deixar o trabalho, se lançou à compreensão de como esse lugar se reproduz dentro das instituições, ciente de que, se o lugar de poder e autoridade é monolítico, vai na direção de um determinado grupo, do grupo que concebe o caminho que deve ser seguido.

Recentemente, um jovem branco me perguntou quanto tempo ainda teremos de ações afirmativas. Eu disse para ele que quatro séculos seria o tempo correto, porque nós fomos parasitados por quase 400 anos.

Cida Bento

A autora costuma dizer que nem todos os brancos estão nos lugares de poder, mas todos os lugares de poder são ocupados majoritariamente por brancos, o que impõe a necessidade de se pensar como isso vem acontecendo ao longo de cinco séculos de história. Também gosta de diferenciar – confessa que por uma provocação do filho – a branquitude e o branco. “Quando penso no branco, penso em um segmento que, querendo ou não, se beneficia de quatro séculos de escravidão, porque os antepassados deles criaram uma estrutura concreta e simbólica de como elas pensam, de como traduzem o seu pensar nas teorias, na estrutura que favorece o branco”, explica. “Mas nem todos os brancos exercem a branquitude, que é o exercício concreto de consolidar essa herança, limpar o sangue e as expropriações, e transmiti-la como se fosse um mérito”.

Cida Bento fala sobre o silenciamento do que não interessa lembrar na história do Brasil. Pensa principalmente na total inconsciência dos jovens brancos sobre o tipo de herança que recebem. “Recentemente, um jovem branco me perguntou quanto tempo ainda teremos de ações afirmativas. Eu disse para ele que quatro séculos seria o tempo correto, porque nós fomos parasitados por quase 400 anos. Mas a gente não quer que demore quatro séculos, vamos agilizar esse negócio. De preferência quatro anos, quem sabe 40. Esse é o tempo que a gente trabalhou para criar uma herança que hoje está na sociedade”.

A engrenagem de transmissão desse pacto não verbalizado para as novas gerações opera com violência, mas está por um triz, afirma com otimismo. “Alguém diz, ah, isso é moda. Não, não é moda não, não tem caminho para trás, não é possível interromper o fluxo do que está acontecendo no país, a sociedade tem tensionado cada vez mais esses lugares de privilegio”, declara. Cida Bento evoca o ideograma africano da Sankofa para falar de esperança e futuro. “Nossos meninos brancos e negros têm que saber a história do nosso país. Olhar para o hoje e ver o ontem no hoje, olhar para trás, ver o que aconteceu, saber como se constituíram essas heranças.

Cida Bento é convidada com frequência para falar em escolas particulares da elite, e afirma que é exatamente lá que quer estar. Quer conversar com as crianças que amanhã estarão com a caneta na mão, com as operadoras do direito do futuro para, quem sabe, “evitar que alguém diga que não viu nada demais amarrar um negro numa vara, e carregar ele para lá e para cá”.

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