Transitando entre documentário e narrativa ficcional o longa mostra o cotidiano da ocupação e as lutas por moradias dignas
Era O Hotel Cambridge (2016), de Eliane Caffé, toma por tarefa retratar uma espécie de Torre de Babel do século 21. No mito bíblico, Deus castigou os humanos pela soberba de tentar alcançar os céus, confundindo a língua dos homens. Neste longa, os humanos são coibidos pelo(s) mesmo(s) Estado(s) que lhes nega(m) seus direitos, quando buscam ocupar, com suposta “soberba”, nada mais do que a Terra, o lugar daqueles aos quais foi negado o Céu. Mas há uma diferença grande entre o mito e a realidade que o filme retrata: se no mito a diferenciação entre as línguas levou à desordem e ao desentendimento, na realidade das ocupações as diferentes línguas e sotaques se organizam para resistir, ainda que tropeçando, aqui e ali, nos conflitos internos.
Leia Mais: Filmes
A ausência da resposta em Silêncio, de Martin Scorsese
A natureza humana em Até o Último Homem
Logan alcança nível dramático inédito para filme de supers
Tradução e afeto em A Chegada
O baile de máscaras em Jackie, de Pablo Larraín
As palavras cortantes em Animais Noturnos
O Hotel Cambridge do título é um edifício localizado no centro da Cidade de São Paulo, que, em 2011, foi desapropriado e declarado pela prefeitura como área de interesse público. Em 2012, grupos de luta popular por moradia ocuparam o lugar. É daqui que o filme parte, numa contagem regressiva sempre assustadora, típica dos filmes de terror, até a reintegração de posse ameaçada no primeiro terço do filme. Isso sem ignorar, é claro, aquela que era a realidade que moveu o projeto de início: a crise dos refugiados, esses refugiados que, vindos de toda parte, encontram no Hotel alguma acolhida.
Assim, a diretora se coloca no interior da produção mais relevante do documentário brasileiro contemporâneo. Esta produção vem aprofundando uma questão que, na realidade, pulsa no cerne do documentário desde aquele que é considerado seu ato inaugural, o filme Nanook do Norte (1922), de Robert Flaherty. E essa questão é: quais seriam as fronteiras entre ficção e documentário? Como a maior parte da produção do atual documentário brasileiro, o filme de Eliane vem mais para confundir do que para explicar, embora, nesse sentido, ainda seja tímido se comparado aos filmes de Adirley Queirós, ou aos curtas-metragens de André Novais. De qualquer forma, é nessa fronteira que se ergue Era O Hotel Cambridge.
A diretora se mostra muito habilidosa na lida com os não-atores que, embora interpretem, em grande medida, a si mesmos, são conduzidos por um roteiro. Em contrapartida veem-se obrigados a sustentar, algo que, nas mãos de Eliane, fazem muito bem (com direito a um romance que, embora um tanto forçado para dentro da narrativa, sabe se sustentar por si só). Para amarrar e confundir ainda mais a região fronteiriça que escolhe, a diretora ainda conta com os consagrados atores José Dumont, que encarna o agitador cultural Apolo, e Suely Franco, que traz, através de Gilda, um melancólico alívio cômico às sequências mais improváveis.
Outro mérito, tanto do roteiro – que Eliane assina junto a Luis Alberto de Abreu e Inês Figueiró -, quanto da direção, é a capacidade de explorar, sem moralismos vãos, as contradições internas de cada personagem, tornando-os mais humanos, porque mais plausíveis. Assim, o imigrante palestino Isam (personagem ou si mesmo?) que manifesta seu machismo latente em mais de uma cena é, a cada vez que o faz, reprimido pelas lideranças – todas mulheres – da ocupação. Nem por isso somos menos capazes de entender e aderir ao profundo e humano drama pelo qual passa o palestino. O filme é capaz de traçar essas e muitas outras contradições da complexa realidade das ocupações com leveza e humor. É verdade, no entanto, que, por vezes, o filme deixa-se levar excessivamente pelo humor. Não porque uma realidade “dura”, ou sua retratação, seja incompatível com o bom humor, a questão é que, do ponto de vista do documento, que Eliane não deixa de se propor a construir, fica faltando aprofundar pelo menos dois aspectos essenciais das ocupações: seus modos de organização e suas reuniões não enviesadas por necessidades dramáticas.
Há pelo menos dois momentos, entretanto, em que essa abordagem leve alcança momentos precisos em suas críticas. Um, é quando a líder do movimento, Carmen Silva, numa encenação de um possível encontro entre ocupantes e a juíza que avalia o processo da reintegração de posse, mostra como a mexerica, que eles levam para as crianças enfrentarem a longa jornada no tribunal, pode condensar as possibilidades do futuro dos ocupantes diante da decisão implacável da magistrada. O líquido ácido expelido pela fruta é a um só tempo afronta à autoridade, e a causa da indisposição da juíza para com os ocupantes, é a força e a fragilidade da ocupação. O outro, é quando Apolo coordena uma intervenção cultural que consiste em quadros vivos, nos quais se faz uma ode à pluralidade cultural do edifício: cada grupo toca músicas e realiza danças típicas de suas culturas originárias, e, ao comando de Apolo, congelam em posições que serão registradas pela videomaker local. Aliás, é nessa pluralidade que o filme também ameaça se perder, vendo nas especificidades culturais alguns estereótipos românticos e idealizados que, nos casos em que não se pode examinar as contradições internas dos indivíduos – como se faz com Isam -, acaba-se por engessar os personagens.
Curioso notar que a intervenção cultural, encarnada no filme por Apolo, é o ponto de contato entre o que é ficção e o que é documentário, não só na esfera do que é retratado, do puramente fílmico, mas também na esfera do extra-fílmico. Carla Caffé, a diretora de arte, que também é professora da Escola da Cidade, realizou o projeto de cenografia do filme junto de seus alunos, e em diálogo direto com os membros da ocupação. Assim, as mudanças feitas para o filme não visaram apenas mudanças estéticas e temporárias, mas sim garantir melhorias efetivas na infraestrutura das ocupações. Essa é uma prova, talvez, de que, em diversos âmbitos, nosso tempo vai se constituir na ressignificação dos rejeitos e das ruínas.
É nessa Torre de Babel às avessas que Eliane Caffé vem acrescentar sua voz ao coro dos cineastas que se defrontam com a problemática da especulação imobiliária e do capital financeiro, que, no caso, ganha ainda mais camadas com a questão dos refugiados, uma vez que muitos deles são desocupados de seus próprios territórios em função da manutenção de guerras cujo sentido último é alimentar a indústria bélica, ou se veem obrigados a fugir de seus países para escapar de conflitos causados pela disputa da exploração de minérios utilizados na fabricação de celulares – os mesmos celulares que, ironicamente, permitirão que estes refugiados falem com os familiares que ficaram no país de origem. É nessa nova Torre de Babel, cujo cenário é caro às distopias pós-apocalíticas, que se enuncia uma vontade de utopia ainda em construção.
ERA O HOTEL CAMBRIDGE
Eliane Caffé
Com Carmen Silva, Isam Ahmad Issa, José Dumont
[Brasil, 2016 / Vitrine Filmes]