Moebius
Moebius foi um mestre absoluto da representação espacial. (Reprodução).

Cidades visíveis e invisíveis dos quadrinhos

Um passeio por histórias em que os cenários estão em primeiro plano na narrativa, da São Paulo de Laerte a Chicago de Chris Ware, passando por os sonhos futuristas de Moebius, a NY de Eisner e Gotham City

Este texto foi publicado originalmente na edição impressa da revista Plaf. Acesse a página especial da revista e compre as edições anteriores.

Conta-me as cidades que possuo, diria Kublai Khan a Marco Polo, exigindo que o viajante por ele contratado desse conta de descrever todas as aglomerações urbanas do vasto domínio do imperador mongol. Marco Polo, que não sabia falar a língua do soberano, criava gestos, tocava em objetos, fazia caretas e movimentos para tentar de alguma forma representar (ou apenas apresentar) como cada uma das cidades que ele descrevia tinha uma personalidade própria. A cidade que “contém seu passado como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras”.

A relação fictícia entre Kublai Khan e Marco Polo, bem como as descrições poetizadas das cidades a partir das memórias, desejos, símbolos e trocas que elas carregam, estão presentes no romance Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, e são com frequência referenciadas quando queremos nos aproximar tatilmente das metrópoles que têm vida própria e que não, não podem ser descritas apenas por mapas, números e autos oficiais. Toda cidade, como bem escreve Calvino, vem carregada de sensações, texturas e cheiros que somente os viajantes mais inventivos, como o Marco Polo fictício, podem dar conta. E na História das histórias em quadrinhos, não foram poucos os artistas que igualmente conseguiram fazer pular do papel essa tessitura própria das cidades que, oram foram por eles criadas, ora reinventadas, ora utopicamente imaginadas entre a cabeça, o coração e a ponta do lápis.

Este texto se propõe então a fazer um exercício de flânerie por algumas das cidades que terminei descobrindo ao longo de alguns anos (algumas décadas, serei sincera) lendo desde gibis até as elaboradas graphic novels. Flânerie no sentido de que a intenção é, sobretudo, tentar andar pelos espaços dessas cidades e, tal como uma viajante a serviço de uma majestade ansiosa em conhecer os espaços de seu império, convidar a quem estiver lendo de fazer também esse caminho comigo. Serão passeios por histórias que, intencionalmente ou não, jogaram essas cidades para o primeiro plano da narrativa, transformando-as em personagens tão importantes quanto os heróis, anti-heróis e sujeitos comuns que habitam nela. 

Nova York, Recife, Gotham…

O ponto de partida da viagem não poderia ser outro senão pelo autor que foi tão, mas tão obcecado pela cidade onde viveu, que fez dela o tema maior de suas mais celebradas obras. Will Eisner esmiuçou uma certa vizinhança de Nova York, mais particularmente aquela das cercanias do Bronx dos anos 1930/40. Em trabalhos como Um Contrato com Deus e, particularmente, em O Edifício, Eisner abriu na nossa frente uma janela que deu a ver todas as pequenas alegrias e grandes angústias daquela periferia de cidade moderna que havia, em tão pouco tempo, superlotado todos os seus espaços entre a virada do século 19 para o século 20, sofrendo as consequências de um urbanismo mais acelerado que qualquer trem a vapor. 

Sou capaz de escutar os vizinhos de cima reclamando da água que não aquece e visualizar com o canto do olho, que lá embaixo, na rua, um grupo de meninos planeja alguma trela da qual eles vão se arrepender daqui a alguns minutos. A Nova York de cheiros fortes de um esgoto ainda insuficiente para a população, de invernos duros e verões insuportáveis, uma cidade cheia de pessoas mal-humoradas e ladrões de carteira e, ao mesmo tempo, repleta de últimos românticos e sonhadores otimistas. Eisner faz da cidade sua personagem favorita, desenha ruas ora alegres, ora assustadas. Faz das janelas dos vagões de metrô telas de cinema, faz das escadarias que ligam os edifícios às calçadas o local onde a indiscernibilidade entre o público e o privado anunciam novos tempos. 

Viro a esquina, retiro mais um livro da estante e dou de cara com a São Paulo de Angeli e Laerte dos anos 1980. Primeiro nas páginas da Chiclete com Banana e, depois, nas filhas e filhos dessa revista. Entre a prole, Rê Bordosa e Piratas do Tietê. Com a musa mais famosa de Angeli, conheci uma São Paulo com cheiro de cigarro e hálito de vodca. Uma cidade em que a rua era o bar, e o bar era um banheiro sujo. Mas a São Paulo de Rê Bordosa é muito mais uma projeção do espaço externo dentro do discurso interno da própria personagem que a visualização de suas esquinas. A pessoa que realmente conseguiu desenhar a capital paulista com toda a espacialidade de suas ruas, prédios e placas de trânsito foi Laerte.

Chris Ware Cidades
Aparentemente tão higienizada em sua superfície, a Chicago de Chris Ware esconde detritos de um desconforto geral. (Divulgação).

E é nela, a partir de um ponto de vista muito insólito mesmo para quem nasceu ou já morou na cidade, que é feito esse passeio urbano: de dentro do rio Tietê. Laerte me trouxe o cheiro de esgoto daquilo que, um dia, foi de fato um rio, para tentar sentir na pele o que é andar por uma cidade onde a paranoia é um estado de espírito que beira o hilário. O trânsito parado e os cidadãos dormentes que moram nessa cidade são tão absurdos quanto a imagem de um navio de piratas navegando e mijando e cuspindo rum no Tietê. Até hoje para mim, e isso se deve fundamentalmente aos trabalhos de Angeli e, particularmente, Laerte, São Paulo é a cidade que catalisa a essência do absurdo.

Olho para o chão, vejo uma bituca de cigarro e quando levanto os olhos estou no Recife, ou melhor, o Recife está no meu corpo. Da minha pele brotam edifícios, cada vez mais altos, e sou consumida pelas imagens que fundem o ser humano e a cidade tal como desenhadas por Raoni Assis, quando na compilação quadrinizada Tô Miró, ele traz esse Recife de concreto que está dentro de nós. “Quantos sacos de cimento há em ti, Recife? Quiçá meu coração não vire concreto, quiçá meu coração não vire cimento”, é o que o poeta Miró pergunta, no que Raoni responde com um traço que faz fundir o sujeito e a cidade num só corpo. Seriam cumpli-cidades ou infeliz-cidades?

Na dúvida, pego voo. Decido que é momento de sobrevoar alguns desses espaços e, lá de cima, visualizo as cidades imaginadas por Moebius, particularmente aquela desenhada na saga The Long Tomorrow, publicada no Brasil pela Nemo dentro do volume O Homem É Bom?. O cenário pós-moderno de prédios que sobrepõe todas as correntes arquitetônicas do mundo num só lugar me falam desse ambiente de identidades fugidias, onde posso ser quem quiser e, no virar da esquina, me transformar em outra pessoa.

Mestre absoluto da representação espacial, com um senso de perspectiva de fazer alguns dos melhores arquitetos do mundo prestarem muita atenção em seu traço, Moebius me apresenta uma cidade futurista tão ou mais cínica do que aquela em que vivo hoje. O excesso de modernidade e tecnologia que há nela traz para o primeiro plano uma beleza, muito bem projetada por seu desenhista, a revestir a sensação de vazio existencial que atravessa seus cidadãos. Não é coincidência que essa mesma HQ tenha se tornado uma referência de imagem para a construção das Los Angeles de Blade Runner, de Ridley Scott.

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Cidade mais famosa dos quadrinhos, Gotham City tornou-se personagem marcante. (Arte de Tim Sale/Divulgação).

Mas se sinto que com Moebius a cidade se adapta aos meus desejos, sejam eles bem intencionados ou perversos, naquela que se tornou a cidade mais famosa dos quadrinhos não há muitas vias de escape para ser qualquer outra pessoa senão uma sombra que, com sorte, consegue escapar da índole criminosa desse grande centro urbano. Não poderia estar falando de outro lugar senão de Gotham City, particularmente daquela Gotham desenhada na saga Destroyer, no começo dos anos 1990, quando a cidade finalmente deixou de ser apenas um espectro remodelado de Nova York para se transformar em uma personagem de características muito próprias, fortemente influenciadas pela concepção visual da Gotham criada por Anton Furst e Tim Burton, no Batman de 1989.

Ou seja, uma cidade com uma certa energia de Art Deco, mais sombria, onde todos os prédios e curvas disparavam um éthos da vilania inerente ao local. Na versão dos quadrinhos, essa direção de arte se expande para a própria história a ser contada: em Destroyer, o grande vilão em cena quer implodir os edifícios retos e modernos de Gotham para revelar que, por debaixo dessas estruturas, existe uma base essencialmente sinuosa nessas construções, numa arquitetura que, uma vez exposta, invocaria forças maléficas de volta à cidade.

Fujo de Gotham para tentar respirar ares menos contaminados e chego à Chicago de Chris Ware, onde a mediocridade da classe média me parece, à primeira vista, inofensiva sem ser, com isso, menos marcada por detalhes bastante específicos. Ware desenha os espaços, externos e internos, como se fosse ele mesmo um arquiteto apegado à simetria das coisas, às proporções corretas que nos dão uma (propositalmente) falsa sensação de harmonia e serenidade.

Will Eisner New York The Big City comic 48
Poucos autores foram tão obcecados pela própria cidade quanto Eisner por Nova York. (Divulgação).

Na ironia melancólica presente em suas histórias e na meticulosa composição dos quadros dentro da página, a cidade reproduzida no papel é fiel à Chicago que existe no plano real, mas se passeamos por dentro dos espaços criados por Chris Ware, vamos perceber que a sua vizinhança é, na verdade, a nossa vizinhança. Há um forte sentido de familiaridade na geografia que ele cria, nessa cidade aparentemente tão higienizada em sua superfície, mas que cavando um pouco dá para encontrar detritos de um desconforto geral.

Poderia passear por vários outros centros urbanos que me marcaram nos quadrinhos, particularmente quando eles me revelaram cidades com as quais dificilmente eu teria contato – óptico e háptico – não fossem os artistas que decidiram desenhá-las. Falo, por exemplo, da Sarajevo e da Gaza de Joe Sacco, ou da Pyongyang, de Guy Delisle.

As HQs são uma linguagem que já nascem tentando dar conta de dimensionar as cidades tanto a partir de suas características físicas visualmente explícitas (a citar algumas páginas de Little Nemo, no comecinho do século 20), como por suas qualidades extra-arquitetônicas e é importante reconhecer o status de personagem que essas cidades adquirem em várias histórias, e que, como uma Marco Polo contemporânea a tentar construir uma moldura sensível do que elas transbordam para além das páginas, minha sugestão final é mais simples: procurem essas cidades, mas antes de conhecê-las, imaginem apenas como seria senti-las.

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