A pandemia do novo Coronavírus impactou fortemente o mundo das artes em diversos países. Por isso, grande parte das instituições estão fechadas, assim como shows, peças e apresentações foram cancelados. Uma das linguagens mais afetadas são as artes cênicas, fundamentadas no encontro e na presença física. Com a proibição de eventos culturais presenciais durante mais de um ano, os artistas, de forma individual ou em grupo, buscam soluções para continuar a criar, refletir sobre o momento histórico e produzir conhecimento a partir das ferramentas tecnológicas disponíveis.
“Foram momentos muito frustrantes porque tivemos muitos trabalhos, ensaios, viagens ou apresentações canceladas, muitas interrupções no fluxo do trabalho de criação”, conta Alan Sencades, artista recifense de circo com experiência em aéreos e roda cyr, aparelho acrobático que consiste em um anel grande feito de metal, mais alto que o artista. “Foi difícil em diversos momentos ter de se distanciar e reiniciar um trabalho que depende de uma rotina intensa de trabalho físico”, detalha ele, que está em Portugal há três anos. Já trabalhou com a roda na rua e agora participa de festivais de circo pela escola, em Portugal, Espanha e em França. Também já fez vários eventos privados em Portugal.
O artista estava na faculdade de Letras quando começou a fazer aéreos. Quando descobriu a roda na internet, encomendou uma e começou a treinar de forma autodidata. “Quando eu descobri o circo, foi pra mim a forma perfeita de trabalhar o corpo em função de algo além do exercício em si, e a partir daí eu fui percebendo que era isso que me movia”, diz Sencades.
O uso da tecnologia digital na cena já vem de décadas e está em consonância com o próprio desenvolvimento e popularização dessas novidades. “Acredito que esse formato foi uma ótima alternativa tanto para nós artistas continuarmos com nossos trabalhos como para as pessoas que estavam com expectativas ou com necessidades de se alienar ou evadir um pouco desses tempos sufocantes”, ressalta o artista.
Em entrevista à Revista O Grito, Alan Sencades conversou sobre sua carreira, trouxe memórias de sua terra natal, além de contar sobre seus interesses no mundo das artes e dos projetos que vem preparando para os próximos meses. Confira:
Você estuda o corpo e o movimento. O corpo é o espaço mais palpável onde a arte acontece, onde os sentidos são estimulados e percebidos?
Nós das artes performativas (circo, dança, teatro…) costumamos dizer que nosso corpo é nosso instrumento de trabalho. Parando pra pensar, não faz muito sentido nem chamar nosso corpo de instrumento/ferramenta, já que não é algo acessório a nós, nem dizer que o trabalho com o corpo é uma peculiaridade da nossa área. Trabalhamos com nossa própria matéria, sim, mas como todos os outros artistas e trabalhadores em geral, à diferença de que uns utilizam mais as mãos, outros mais os pés, outros mais a cabeça, outros mais o sexo etc. O que muda, na verdade, é que nossas obras ou nossos produtos artísticos têm realmente como linguagem principal nossos próprios corpos, nós próprios, e entregamos nossos corpos a um público para que este possa se identificar, imaginar ou refletir através de nós.
Como surgiu seu interesse em querer trabalhar com arte?
Tenho a sorte de ser desde pequeno apresentado a várias formas de arte como a pintura, a música e a literatura, além de também ter sido frequentemente motivado a praticar exercícios físicos. Descobrir o circo foi a forma perfeita de trabalhar o corpo em função de algo além do exercício em si, e a partir daí eu fui percebendo que era isso que me movia. Mesmo hoje estando mais direcionado ao circo, eu sinto que minhas experiências e admirações por outras artes como a pintura, a música e a literatura também me motivam e influenciam muito minha forma de criar.
Atualmente você mora em Portugal. Quando e por que decidiu sair do Recife e ir para a Europa?
Saí de Recife em setembro de 2018, e eu decidi sair porque estava à procura de uma formação direcionada para o aparelho que eu escolhi praticar, que é a roda cyr. Na época não tinha professores de roda no Brasil nas escolas de circo, então procurei escolas na internet com esse tipo de formação e fui para o INAC (Instituto Nacional de Artes do Circo), em Portugal.
De que forma esse período de isolamento social tem interferido no seu trabalho? Mudou muito a sua rotina?
Os períodos de isolamento foram em alguns momentos muito frustrantes porque tínhamos muitos trabalhos, ensaios, viagens ou apresentações canceladas, muitas interrupções no fluxo do trabalho de criação, então foi difícil em diversos momentos ter de se distanciar e reiniciar um trabalho que depende de uma rotina intensa de trabalho físico. Hoje em dia estou mais habituado e as mudanças na rotina já não são tão estranhas, além das máscaras, o distanciamento. Mas às vezes assusta um pouco. A relação com o público definitivamente mudou: há menos interação direta, há menos reconhecimento das emoções do público e menos público também, porque existem regras rígidas para os teatros com relação ao uso de máscara e com relação à capacidade máxima de pessoas, que agora sempre está reduzida à metade pela necessidade de haver ao menos uma cadeira vazia entre os espectadores. O bizarro é que estas regras são completamente ignoradas para as partidas de futebol, por exemplo.
A arte opera como um respiro, uma espécie de bálsamo nesse cenário de pandemia e acompanhamos uma série de espetáculos online nesse período. A produção de artes cênicas foi profundamente afetada e os artistas têm, desde então, buscado entender como utilizar os meios virtuais para viabilizar seus trabalhos e sua sobrevivência. Você chegou a se apresentar nesse formato? Qual sua opinião a respeito de apresentações online?
Sim, tive oportunidade de me apresentar três vezes no formato virtual, e acredito que esse formato foi uma ótima alternativa tanto para nós artistas continuarmos com nossos trabalhos como para as pessoas que estavam com expectativas ou com necessidades de se alienar ou evadir um pouco desses tempos sufocantes. Também permite mais facilmente atingirmos outros públicos impossíveis de atingir com o formato presencial, o que é muito bom também.
Relações entre o velho e o novo são alguns temas tão candentes nas artes cênicas e também na sua arte. Como você aborda essas questões no seu espetáculo “do ferro à ferrugem”?
Esse processo de criação começou com uma pesquisa com a minha primeira roda cyr, que é aparelho protagonista desse espetáculo. A dramaturgia se baseia num processo de envelhecimento e a escolha da palavra “ferrugem” tem a ver tanto com o material do aparelho (as rodas são feitas de metal) como com a metáfora sobre a ação do tempo nos materiais e nos corpos, sobre o envelhecer, que é assumido não como deterioração, mas como forma de renovação. Por isso, uma das principais referências utilizadas durante a criação foram os processos de ecdise, que são as trocas de peles que os artrópodes fazem ao longo de suas vidas. Para crescer, esses animais como o caranguejo têm de se libertar de suas cascas e se colocar em vulnerabilidade. Por isso, o envelhecer aqui tem a ver com estar aberto à experiência, que é a única ferramenta transformadora. Como disse Jorge Larrosa Bondía [professor e filósofo espanhol]: “o sujeito da experiência é um sujeito ex-posto. Por isso, é incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre.”
Como foi a experiência de lecionar roda na ACE Escola de Artes, no Porto?
Foi uma experiência maravilhosa. Já no Brasil eu tive oportunidades de dar aulas, mas de roda foi a primeira vez. Foi algo que me forçou a fazer o exercício de refletir e entender o movimento do aparelho e do corpo no aparelho, o que me trouxe também maior consciência corporal e maior conhecimento sobre a roda. Hoje em dia meu aluno já consegue fazer coisas que eu não consigo e também consegue me ensinar muito com suas próprias percepções do movimento.
Muitos artistas, por meio de diferentes expressões artísticas, partem do corpo para expressar sua arte ou denunciar a violência social, cultural e política, como nos casos da atriz transexual Renata Carvalho (da peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu) ou do coreógrafo Wagner Schwartz (com a performance La Bête), por exemplo. Na sua opinião, a que se deve essa perseguição aos corpos na arte?
Eu acho que o corpo é a primeira camada daquilo que nos constitui e que nos conecta uns aos outros. Depois vem a cultura, as experiências e particularidades de cada um, mas um corpo, seja qual for, independente de onde venha e de como se apresente, já é uma imagem em semelhança. Por isso, através dos nossos corpos cênicos podemos provocar empatia nos outros corpos espectadores. Por outro lado, como as sociedades tem fronteiras muito bem delimitadas (de gênero, de sexualidade, de etnia, de cultura…), tudo aquilo que é estranho às próprias fronteiras causa, em muitas pessoas que não têm oportunidade de trabalhar esta empatia, repulsa ou ódio. E é por isso que a arte também deve ser veículo político de denúncia e de representatividade.
Como você avalia daí o papel e a importância das artes no contexto político atual no Brasil?
Estamos em um contexto doentio e a arte é um instrumento de cura, seja ela para alienar e fazer com que a gente escape um pouco desta realidade, como para denunciar as violências que se vivem, já que expressar as dores é o primeiro passo para libertar-se delas.
Para fechar, poderia nos dizer o que você planeja para os próximos meses?
Neste momento estou em criação de um espetáculo coletivo em Portugal com estreia prevista para outubro. Tenho planos também de ir ao Brasil no próximo ano devolver um pouco do trabalho que tenho desenvolvido aqui.
Leia mais entrevistas: