Kwarahy Tazyr, ou “Filha do Sol” em zeeg’ete, língua do povo indígena Guajajara, é o primeiro disco completo de Kaê Guajajara. A cantora e compositora, natural do Maranhão e engajadora da Música Popular Originária, defende suas raízes e alcança uma marca na música brasileira ao produzir a versão visual de seu álbum, o primeiro do tipo a ser estrelado por uma artista indígena.
Na nova fase da carreira, Kaê abarca também a função de roteirista dos nove clipes que acompanham as faixas de Kwarahy Tazyr, que além de apresentar a estética e territórios dos povos originários num contexto urbano, foram produzidos e filmados por indígenas.
A Revista O Grito! conversou com a artista sobre sua trajetória e a construção do álbum visual.
Kaê descobriu a música ou a música descobriu Kaê? Como foi essa trajetória até aqui?
Fomos nos descobrindo. A música foi e é um meio de comunicar alguns sentimentos pouco falados no Brasil, sobre como ser indígena na favela e num momento nacional de tamanha violência contra os povos originários, que vem se sucedendo há 522 anos. O canto sempre foi incentivado na minha casa pela minha mãe, Lene Guajajara. Aos poucos fui experimentando composições. O meu primeiro espaço para música foi no Complexo da Maré onde formei uma banda na adolescência, chamada Crônicos ao lado de dois amigos angolanos. Mas foi na Aldeia Maracanã, no Rio de Janeiro, onde apresentei minhas primeiras músicas da MPO (Música Popular Originária). Lá eu pude cantar e, pelo reconhecimento e incentivo dos parentes, busquei parceiros para que a produção musical pudesse acontecer. Antes da música eu já trabalhei em escritórios como recepcionista e também já fui manicure, entre outros cargos subalternos onde tinha de me apagar para seguir. Fui impedida de exercer minha cultura, como os grafismos indígenas que ficam durante muitos dias, e são inaceitáveis nos empregos “formais” num país construído sobre terra indígena roubada.
Como é ser além de indígena, uma artista indígena no Brasil diante de todos os contextos que permeiam os povos originários?
Eu me sinto como uma mensageira de velhas notícias, só que com uma abordagem nova. Nas experiências com o público que assiste o meu show, vejo que estou falando de temas que as pessoas não pararam para pensar. É chocante viver num território originário com tamanho apagamento. Há um grande trabalho a ser feito e fico feliz em ver cada vez mais artistas indígenas, cada um abordando de um jeito diferente as tantas violências, mas também traçando um caminho de retomada para uma sociedade que possa se conectar mais com o bem viver coletivo.
Quais as influências de Kaê na música? Ritmos, artistas?
Ouço muitas coisas. Alguns dos artistas que gosto muito: Doja Cat, Stromae, instrumentais do Nomade Orquestra.
Como surgiu a ideia de produzir Kwarahy Tazyr?
Depois de amadurecer o entendimento sobre diversos acontecimentos, do hoje e da história, entre nós e com os outros, surge Kwarahy Tazyr. Uma expressão do que pessoas indígenas vivem nas favelas, em terras indígenas roubadas, e suas trajetórias brutais até chegarem nesse lugar. Como nós indígenas fomos parar nas periferias das grandes cidades? Sob que condições? Foram tantas perdas, mas nessa geração ao mesmo tempo que as violências continuam, temos uma brecha, uma oportunidade de nos expressar.
E a ideia de montar o álbum visual a partir do disco?
A narrativa visual se faz importante para reforçar a mensagem da composição, como se cada canção se materializasse. Além disso, há uma escassez de trabalhos audiovisuais de indígenas com narrativas construídas, filmadas e trabalhadas pelos próprios indígenas, e isso é necessário para aparecer no meio artístico nacional, que é um ambiente extremamente colonial e anti-indígena, quando aparecemos é sempre de uma forma fantasiosa e fetichizada, trabalhado em cima de estereótipos racistas.
Como foi o trabalho como roteirista?
A criação da narrativa audiovisual foi pensada com Kandú Puri, que fez a direção do álbum visual. Foi um desafio importante materializar as minhas composições, pois nossa forma de contar as histórias tem que ser bem pensadas no sentido de contribuir com um pensamento antirracista, que combata o racismo estrutural que tanto afeta nós indígenas. Juntos, nós fomos criando as possibilidades, até chegar nos resultados que estamos entregando a cada lançamento de clipe.
Como cada clipe foi pensado? Quais as inspirações?
Os clipes foram pensados juntos, como parte de uma mesma história, que narra diferentes aspectos da colonização, do racismo que atinge nós indígenas, e da força que nós temos em nossa terra e sempre tivemos diante dos invasores. As inspirações foram as vivências indígenas na favela e o desejo de colocar isso nas imagens, sem ter conseguido achar nenhuma referência no meio artístico dessa narrativa.
Como se deu o processo de produção/filmagem?
Tudo foi feito na raça, na garra mesmo. Com uma equipe majoritária de artistas indígenas e com participação de outros artistas periféricos. Foi apenas um mês de gravação para nove clipes, além de edição e finalização. A direção de arte e styling de Sofia Gama, a beleza feita por Luisa Kwarahy, a assessoria de Lisi Barros, foram essenciais para mim,enquanto pessoa indígena, me sentir à vontade nesse espaço de criação. As filmagens foram em pontos estratégicos do Rio de Janeiro, ligados à história indígena do local, numa pesquisa feita por Kandu Puri. Filmamos em lugares como a praia do Flamengo, a Aldeia Marakana, o Paço Imperial, os Arcos da Lapa, a Igreja da Glória, e também até no monumento dos “descobridores” em Lisboa-Portugal, em uma oportunidade que aproveitamos em um show que realizamos lá e descobrimos um pouco sobre a visão colonial que se tem do lado de lá.
O formato de visual de Kwarahy Tazyr lança os clipes num cronograma semanal. Em julho foi ao ar o material de “Minha Missão”, e posteriormente, os sequenciais de “Meu Respirar”, “Home”, “Sol em Leão”, “Amor Indígena”, “Filha da Terra” e “Minha Voz”. O nono e último videoclipe do álbum, “Meus Olhos”, estreia no dia 9 de setembro, dia que marca o primeiro show da turnê de Kaê no Recife, no Teatro do Parque.
Com as datas da fase Norte e Nordeste definidas, após o show de abertura no Recife, Kaê segue para São Luís, nos dias 10 e 11 na Casa d’Arte e ChãoSLZ, e finaliza em Manaus, nos dias 16 e 18, ainda deste mês, no Casarão de Ideias e na Te Encontro na Barroso. Para acessibilidade também dentro do mês da visibilidade surda, os shows vão contar com interpretação em libras. Em breve datas para o Rio de Janeiro e São Paulo serão anunciadas. A turnê conta com apoio da Natura Musical.
Tem noção da relevância e do seu pioneirismo com essa ação? Sente o peso da representatividade?
Entendo este movimento como um primeiro passo de outras produções indígenas que podem surgir no Brasil. A MPO está vibrando em todo o território ancestral. É um meio poderoso de assimilar o que está acontecendo e questionar o que queremos como sociedade, como coletividade que somos, ou deveríamos ser. Assim como a igreja católica utilizou a música como ferramenta para catequização dos povos indígenas, a música pode ser também a chave que liberta essa grande ferida aberta, que é a colonização.
O que a artista pensa para o futuro?
Viver, e até o bem-viver, independente do que for, que seja para além do sobreviver. Para isso, apenas em coletividade. Por isso, o foco agora é na formação do projeto Voa Parente do Selo Azuruhu, onde diversos artistas indígenas poderão se lançar em vários formatos, para lutarmos também dentro desse meio artístico pelas nossas vozes.