Chloé Cruchaudet sempre se questiona antes de iniciar a produção de uma nova obra. Essa curiosidade parte sempre da tentativa de compreender os limites do ser humanos em determinados contextos. A autora francesa baseia sua obra na investigação histórica, sobretudo de personagens marginais ou pouco compreendidos. Ao analisar, a partir do poderoso recurso da perspectiva histórica, as motivações e dilemas de seus retratados, ela salienta ainda mais a humanidade inerente a essas pessoas reais.
A autora esteve presente no Festival Internacional de Quadrinhos – FIQ, em Belo Horizonte, que aconteceu entre os dias 3 e 7 de agosto, onde participou de debates e sessões de autógrafos. Cruchaudet é autora de Degenerado, HQ lançada no ano passado que conta a história de Paul/Suzane, uma pessoa que muda sua identidade de gênero em um período em que tal ato era considerado um crime e um ultraje social. O livro na verdade aborda a relação de Paul e sua esposa Louise na Paris dos anos 1910 a partir da relação atribulada do casal. Baseado em fatos reais, a obra saiu no Brasil pela Nemo e entrou em nossa lista de melhores HQs de 2020.
Degenerado é a única obra de Cruchaudet a sair no Brasil. Ela também é autora de Ida (três volumes), inspirado nas mulheres viajantes do século 19 e La Croisade des Innocents, sobre as crianças que partiram nas Cruzadas no século 13. Apaixonada por estudos históricos e sociológicos, ela começou a carreira como quadrinista com o livro Groelandia-Manhattan, sobre os pioneiros da exploração do Polo Norte, em 1897.
A Revista O Grito! bateu um papo com a autora, que falou de seu livro mais conhecido e também do novo trabalho que está desenvolvendo.
Como surgiu o interesse em contar a história de Paul/Suzanne? O que mais te atraiu nesse personagem histórico?
São sempre as perguntas que me instigam a produzir um livro. Neste caso, eu me perguntava como Paul conseguiu se passar por mulher por dez anos… Esta situação excepcional levanta muitas questões. Não é todo mundo que tem a oportunidade de, em uma existência, vivenciar várias identidades. E foi isso que Paul experimentou, não por inclinação, mas por necessidade, porque queria escapar da guerra. Nosso sexo, nosso nascimento, nos atribuem papéis, mas parece-me que se nos resvalarmos para outro “traje”, talvez nosso comportamento e nossa maneira de pensar poderiam ser modificados de maneira profunda, de modo que se tornasse difícil voltar atrás.
Sempre me perguntei sobre a participação do adquirido e do inato em nosso comportamento, e não posso deixar de achar a ultrafeminilidade, como a ultramasculinidade, grotesca. As pessoas que mais gosto são aquelas que estão no meio, ou melhor, aquelas que escolhem de cada gênero o que melhor corresponde à sua personalidade “real”, sem se preocupar com o que pensamos delas.
Para construir essa história, eu realmente tentei me colocar no lugar delas e imaginar como esse travestismo perturba o equilíbrio do casal e transforma a personalidade de Paul de maneira duradoura. No ensaio dos historiadores (que não é um romance, insisto nesse ponto) há áreas obscuras para as quais propus uma interpretação pessoal, e não me censurei em mostrar a complexidade, o lado bruto, para tentar ir além da história “engraçada” de um homem que se disfarça de mulher.
Para todos os livros como regra geral, o desafio é que o leitor esteja totalmente imerso no universo da história, sinta as emoções dos personagens, a atmosfera, os cheiros… Também espero sempre que ele deixe um rastro na memória, que leve a refletir e faça perguntas.
Em Ida (ainda inédito no Brasil), você se inspirou em personagens históricos do século 19. Como surgiu seu interesse em contar a história dessas experiências de vida? E, na sua opinião, qual o diferencial da arte dos quadrinhos em contar essas histórias?
Eu amava todos os personagens aventureiros do século 19. Não podemos imaginar qual deve ter sido a dureza das viagens daquela época, são verdadeiros heróis. Eu criei essa personagem de Ida com seus pontos fortes e defeitos para falar sobre aquela época e apresentar aos leitores uma personagem feminina complexa, mas, espero, cativante. Quadrinhos são uma arte completa, na qual o autor deve recriar um universo autônomo e traçar um paralelo com os filmes, deve escalar o elenco, ser um designer de iluminação, montar a cenografia. O que custaria ao cinema milhões de dólares para o autor custa seu suor e seu tempo, mas fora esses dois parâmetros, tudo é possível! É uma arte modesta, na medida em que requer pouquíssimos meios, mas é maravilhosa. Você entendeu, eu amo meu trabalho!
Você está atualmente trabalhando em um novo quadrinho? Você pode nos contar um pouco sobre o que podemos esperar de seu novo quadrinho?
Atualmente estou trabalhando no volume 2 de uma história em quadrinhos que conta a verdadeira história da empregada de Marcel Proust. Uma história de luta de classes, mas também de amor, entre dois personagens atípicos. Eu me divirto muito trabalhando nesse assunto, e aconteceu comigo no Brasil de eu colocar meus fones de ouvido e ouvir alguns trechos em áudio de uma leitura do escritor. A mistura de Marcel Proust com as paisagens do Brasil foi muito bonita!
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