Bule Recife mar23 por Hannah Carvalho 02
Foto: Hannah Carvalho/Divulgação.

Papo com a banda Bule: “Fomos alfabetizados musicalmente pelos anos 1980”

O grupo de indie pop resgata a sonoridade dance oitentista com raízes pernambucanas e prepara o segundo álbum de estúdio

O bule é um objeto que serve para ferver ingredientes dentro de si para chegar a um produto final, seja um chá ou um café. Nesse mesmo propósito, substituindo os ingredientes ingeríveis por synths, guitarras, arranjos e melodias, tendo a música como finalidade, é que se deu o nome do grupo formado por Pedro Lião (voz, synth), Carlos Filizola (guitarra, synth), Berna Coimbra (contrabaixo), Kildare Nascimento (bateria) e Damba (percussão, programações).

A Bule se chama assim inspirada num período de um ano em que os integrantes passaram “fervendo” músicas, como eles mesmos chamam o processo de aprendizado que foi a produção. 

O mote era uma referência comum aos cinco, a sonoridade dos anos 1980 e seu pop dance. Os integrantes da Bule, quatro moradores do Recife, e um (Kildare), vindo de Escada, interior de Pernambuco uniram a estética ointentista ao tropical típico do nordeste para formar sua identidade musical.

Tudo começou em 2017. Os integrantes já se conheciam por projetos que fizeram ou participaram juntos. O curso de produção fonográfica que Carlos e Pedro faziam na época se uniu a admiração que o quinteto cultivava entre si com os gostos complementares na música, culminando nesta reunião. 

Em 2018, a Bule debutou com Cabe Mais Ainda (2018), cantando sobre o cotidiano. Neste ano, o grupo se prepara para a vinda de Dançando Sem Ninguém Me Ouvir, com data de estreia revelada com exclusividade para a Revista O Grito!, dia 30 de junho. O disco se encaixa nos contextos pandêmicos de temas mais reflexivos e intimistas, ainda assim com a proposta de colocar para dançar. Junto às faixas, estreia também um audiovisual gravado no Teatro Santa Cruz no Centro Cultural Mercado Eufrásio Barbosa. 

Leia o papo com a banda:

O Grito! – Como esse ciclo de amizade entre Pedro, Carlos, Berna, Kildare e Damba resultou na Bule?

Bule – Todo mundo já tinha tocado com alguém da banda em algum outro projeto que teve. Eu (Damba) já tive um grupo com Pedro, quando tínhamos 15 anos. Kildare, Carlos e Pedro também fizeram uma banda em algum momento. Fomos nos conhecendo a partir desses outros projetos e criando afinidades pelos gostos musicais, curtindo como cada um tinha sua própria visão. Pedrinho e Carlinhos estudavam na Uniaeso, no curso de produção fonográfica e iam juntos para a faculdade, uma época em que eles trocavam muita ideia e tinham essa vontade de fazer a banda. Fomos vendo quem estava curtindo as mesmas coisas e fechando com os cincos. 

Foi o clichê clássico dos amigos que tinham o flerte pela música e aconteceu a seleção natural de unir a galera que estava afim de fazer isso para a vida. O que foi uma parada muito boa, porque é até difícil encontrar cinco pessoas que fluem num pensamento parecido. Começamos a nos encontrar para fazer música no computador, num processo de produção diferente do que fazíamos quando éramos mais novos, quando criávamos as músicas nos ensaios. Daí começamos nisso, dos meninos aprendendo a produzir e ficamos gravando a partir das ideias de sonoridades.

Bule.

De onde veio a inspiração para o nome da banda?

Já estávamos nos encontrando, fazendo as músicas, e tínhamos dois lados importantes para essa escolha. Queríamos um nome curto, e depois entendemos que fazia total sentido pelo período de um ano que passamos “fervendo” as músicas, os timbres. A gente estava aprendendo enquanto criava as músicas. Tem o lado de ser curto e poético. É uma premissa da banda ter cuidado com os sentidos. Desde o começo temos esse zelo com os timbres. E antes de colocar os ingredientes no objeto bule, você precisa preparar antes as quantidades certas, o que vai e o que não vai. A banda é essa unificação dessa identidade de cuidado organizacional e funcional.

A estética dos anos 1980 é guia do primeiro disco, o Cabe Mais Ainda, e dos trabalhos posteriores da banda. Como foi concebida a ideia de resgatar essa sonoridade? 

Não vivemos nos anos 1980, mas a juventude dos pais da gente tem uma visão afetiva daquela época. Musicalmente foi a parada que observamos estar presente numa Madonna ou até mesmo num Gilberto Gil com esse pop. Veio com Carlos e Pedro afunilando esses gostos e apresentando para todos nós. Também funcionou por uma proximidade geracional entre os integrantes. Por mais que tenhamos visões que possam divergir, os anos 1980 foram uma intersecção musical entre todos nós. Todos temos algo em comum voltado aos anos 1980. Carlinhos e Damba tem uma pegada mais regional, Pedro traz uma veia mais erudita, Berna vem com um rock mais oitentista, eu (Kildare), uma parada mais romântica, flashback do interior. Fomos alfabetizados musicalmente pelos anos 1980, e foi um fluxo muito natural para nós. Talvez se fôssemos de São Paulo, teríamos um som diferente. Como somos nordestinos, somos influenciados por esse pop tropical, dançante, oitentista.

Começamos a fazer pesquisa, ler, e querer entender musicalmente como funcionava fazer esse som naqueles anos, experimentar synths, pedal, guitarras antigas. O disco Cabe Mais Ainda é essa síntese, nós experimentando como isso funcionava e ao mesmo tempo imprimindo nossa identidade. Se descobrindo como artistas e querendo criar uma onda, fazer parte de algo, mesmo sem entender muito. Sem muita pretensão e ao mesmo tempo querendo muito, sonhando alto.

Como vocês enxergam a recepção do público? Mesmo que não determinante, a cena local tem seus ritmos medalhões, como enxergam a presença do indie pop nesses terrenos?

Não acho que seja um desafio. Recife tem cena para tudo. A cidade é bem cíclica. Em 2019 quando estávamos tocando muito o movimento de público estava bem grande. É mais difícil estarmos aqui olhando para um panorama nacional. Percebemos que as coisas acontecem mais para o lado de São Paulo. A movimentação aqui é cíclica, uma hora tá bombando, outra, aparecem menos bandas autorais. Acho que depende muito mais do movimento do que do público. Entendo que diante de ritmos consagrados vamos para um lado diferente, um caminho mais nacional. Em festa que todo mundo vai de calça sempre vai ter alguém que vai de bermuda. Pernambuco por ser um espaço multicultural tem lugar para todo mundo, o mais complicado é encontrar esse público que está por aí no Spotify. É começar a fazer essa onda e trabalhar para alcançá-los. Estamos nesse processo de fazer uma coisa bem feita e quem pirar nisso, vai curtir.

O processo de composição e ideias das faixas é um processo coletivo?

Os processos do Cabe Mais Ainda e do disco novo foram diferentes. As canções desse novo disco, provavelmente, todas, foram feitas na época da pandemia. Pedro, quem geralmente escreve todas as nossas letras com Toni Lamenha, chegou com as melodias das canções prontas, com as ideias de piano, ou baixo, bateria, e dali começamos a trabalhar quando a situação melhorou. No primeiro disco foi mais coletivo ainda porque nos encontrávamos semanalmente para criar, só que neste caso, as letras vieram depois. Criávamos todo o arranjo e no final Pedro e Toni assinavam a letra. No geral, o processo flui assim.

Vocês têm um trabalho visual bem experimental, brincando com a teatralidade, as estéticas, as cores, os conceitos dos anos 1980. Como vêm essas propostas e como elas se refletem nos clipes?

É mais uma questão que vem com a canção. Sempre quisemos que ser além de “só tocar”, queremos chamar atenção no palco. Não no sentido cômico, mas de destaque. Tanto que usamos um tempo um tipo de jaqueta brilhosa no show, por exemplo, e ficamos conhecidos como “os meninos da jaqueta”. E é questão de oferecer experiência para o público, do show não ser só cinco caras tocando, ir além da música. Quando começamos a tocar em palcos grandes, de grande projeção e ver shows de outras bandas que admiramos, passamos a entender que é além da música, é proporcionar essa experiência. Naturalmente, incorporamos essa questão para o show, e a partir disso começamos a pensar também nos clipes e estender esse conceito para o vídeo. Para que as pessoas que não tiveram oportunidade de ver o show ou que vão nos conhecer pelo Youtube consigam captar essa atmosfera de como é nossa apresentação. Vender e proporcionar a experiência de forma visual também. Uma coisa está ligada a outra. Estamos passando por evoluções tecnológicas em que as coisas não são só auditivas, mas visuais, sensoriais. 

Vocês já passaram por palcos como do No Ar Coquetel Molotov, Bananada, Mada, Wehoo, Bicicleta, estiveram no Carnaval do Recife em 2023. Como se deu o inicio dessa jornada da Bule pelos palcos?

O Coquetel Molotov foi o primeiro grande festival em que participamos, mas antes disso vínhamos há uns seis meses fazendo um shows por aqui, criando uma rede de públicos. Fizemos um show de estreia no Tropicasa, um lugar que acho que nem tem mais no centro do Recife. Temos nossa onda de fazer nossos próprios eventos também, chamar outras bandas. O Molotov foi o primeiro festival, e inclusive, uma campanha da Uniaeso facilitou esse acesso para trocarmos lá. Usamos 2019 para rodar pela estrada, e foi uma experiência muita boa. Entramos nesse processo de viagens, todos, pela primeira vez. Passando isso juntos, aprendendo e se jogando. Queríamos prolongar mais essas viagens, mas veio a pandemia. Nosso plano agora é conseguir dar mais um giro por São Paulo. Somos uma banda de palco.

Essas viagens que fizemos nos abriram portas como banda e individualmente também, conhecemos novos artistas. Eu (Killdare), Damba e Carlinhos tocamos com outros artistas. Um movimento que é individual mas que foi proporcionado pela Bule. A banda nos credenciou como músicos.

O novo disco por vir traz o amadurecimento da banca ao longo de cinco anos. Quais novos aprendizados, novas vivências e sonoridades que o grupo adquiriu durante esse tempo refletidas no trabalho?

Quando partimos para a sonoridade voltamos a pensar que no Cabe Mais Ainda estávamos fazendo e aprendendo. Hoje, lógico que sempre temos algo a aprender, mas o caminho já está desenhado. Já sabemos o que queremos e o que não queremos. Na questão sonora, trazemos algumas mudanças sutis mas que provam uma evolução. Em questão de letra, foram canções produzidas num momento conturbado da pandemia. Muitas músicas falam sobre perda com a gente tocando e botando para dançar. Mesmo que a gente não queira pesar, a proposta é “dançar com o sofrimento”, você sabe que vai sofrer, mas “dance com isso”. Achamos interessante também essa questão da dualidade, entre um ritmo mais enérgico e uma letra mais intimista. 

Precisávamos passar pelas etapas para entender o que somos. E ainda precisamos de mais. Essas experiências fazem parte de um amadurecimento natural que vem com o tempo. Nesse período de pandemia, meio que evoluímos dez anos em dois. 

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