Onda Nova
José Antônio Garcia e Ícaro Martins
BRA, 1983. 1h42. Comédia. Distribuição: Vitrine Filmes
Com Carla Camurati, Tânia Alves, Vera Zimmermann
Durante o Estado Novo, em 1941, um decreto-lei assinado por Getúlio Vargas proibiu a prática do futebol por mulheres no Brasil. “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”, dizia o documento. Apenas em 1979, sob a sombra da ditadura militar, o decreto seria derrubado. É em meio à germinação das Diretas Já, nos últimos anos do governo militar, que Onda Nova (1983) ganha vida.
Realizado pela Olympus Filme, uma das muitas produtoras da fértil Boca do Lixo, o filme é um irreverente manifesto de empoderamento feminino que aborda pautas relevantes, extremamente atuais, apropriando-se do contexto futebolístico para vociferar contra o conservadorismo e o machismo. Ainda que vista as roupas da pornochanchada (com a característica exploração do corpo feminino pelo olhar masculino, fetichista), numa clara tentativa de atrair público pelo teor sexual da história, a produção consegue a proeza de, aqui e ali, subverter próprios preceitos narrativos do gênero. No ano do lançamento, o filme foi censurado integralmente pela ditadura e teve sua estreia interrompida após a exibição na 7ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Na história, acompanhamos as jogadoras do Gayvotas Futebol Clube, um time feminino recém formado após o esporte ser regulamentado para as mulheres. Com este pano de fundo simples, o roteiro dá-se a liberdade criativa de não seguir uma estrutura narrativa tradicional, pincelando episódios tresloucados e, claro, muitas cenas de sexo com a explicitude que aproxima o filme à “pornochanchada clássica”, se assim quisermos diferenciar. Há sacadas muito boas, como a inversão do que se entendia como os papéis de uma família tradicional; no caso dos parentes de Lili (Cristina Mutarelli), a mãe (Patricio Bisso) é quem lê o jornal no sofá, enquanto o pai (Luiz Carlos Braga) passa o tempo em sua máquina de costurar.

A audácia da juventude, a sexualidade livre das personagens femininas, cada cena parece um tapa na cara da caretice brasileira; exalto ainda a sensação de naturalidade com a qual a câmera dos diretores José Antonio Garcia e Ícaro Martins capta a interação do elenco. A impressão é que todo mundo se divertiu à beça fazendo o filme e isso é transposto ao espectador. Sim, se adotarmos uma postura de problematização com a régua dos dias atuais, é inevitável questionar que o filme tenha sido dirigido por dois homens, com sequências fortemente sexualizadas. Não podemos ignorar, entretanto, que se trata de um filme de quatro décadas atrás. Enquanto há excessos hoje considerados negativos, há abordagens absurdamente corajosas para a época, como a cena da transa entre dois homens e o fato de uma das personagens realizar um aborto.
Buscando uma linguagem pop, Onda Nova tem uma trilha sonora afiadíssima e muito presente, com várias músicas de Rita Lee no repertório e, inclusive, sequências musicais capitaneadas pelas personagens de Cida Moreira e Tânia Alves. As canções funcionam como catalisadoras da narrativa, sempre com letras em sintonia ao discurso proposto pelo roteiro. Como não rir da ironia do filme ao mostrar uma interpretação da música Vale Tudo, de Tim Maia, com os famosos versos “só não vale dançar homem com homem, nem mulher com mulher”, para na mesma sequência duas mulheres se beijarem?
O filme é o segundo da chamada “Trilogia do Desejo”, realizada pelos diretores. Além de Onda Nova, Garcia e Martins produziram O Olho Mágico do Amor (1982) e A Estrela Nua (1984), todos os três com a ótima Carla Camurati. Além das atrizes já mencionadas, o elenco conta ainda com participações especiais de Regina Casé, Caetano Veloso e Walter Casagrande – sendo este último responsável por uma cena inusitadamente cômica.
Psicodélico, extravagante e despudorado, Onda Nova merece a atenção do público brasileiro, neste relançamento da obra nos cinemas do país. É um retrato muito interessante do Brasil que, aos tropeços, buscava retomar as rédeas da sua frágil democracia, no início dos anos 80. Em um país ainda tão conservador que, infelizmente, vive a flertar com o autoritarismo, um cinema provocador e à frente do seu tempo sempre deve ser prestigiado.
Leia mais críticas de filmes
- “Presença”: curioso exercício de estilo de Steven Soderbergh enfeza mais do que satisfaz
- “Onda Nova”, censurado na ditadura, é um chute no Brasil conservador e machista
- Cobertura Curta na Serra: Cinema no friozinho da Serra Negra
- Hamdan Ballal, cineasta palestino e diretor de “Sem Chão”, é preso por agentes de Israel na Cisjordânia
- “Pequenas Coisas Como Estas”: grande atuação de Cillian Murphy eleva filme baseado em sombria história real