A violência permeia o ar em O Agente Secreto desde os primeiros minutos, quando vemos um corpo morto há dias em meio a um posto de gasolina em um canto ermo a caminho do Recife. O personagem de Wagner Moura, até aqui conhecido como Marcelo, se choca com a banalidade da cena, onde o cadáver tem seu corpo disputado por cães. No meio do Carnaval, os policiais que o abordam não parecem se importar com aquela brutalidade e estão apenas interessados em tentar extorquir algum dinheiro.
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Este início tenso vai ditar o tom do novo trabalho de Kléber Mendonça Filho (Bacurau, Aquarius), que estreia nos cinemas em meio a uma forte campanha por indicação ao Oscar e depois de ser celebrado em Cannes, onde venceu como melhor direção e ator para Wagner Moura. Mas ao mesmo tempo em que o longa é uma crônica sobre a violência do Brasil, de antes e de hoje, é também uma narrativa sobre uma população que não aceita a opressão e, em uma espécie de inquietação permanente, encontra maneiras sagazes de enfrentá-la.
Kléber Mendonça canaliza para o seu roteiro esse brio recifense que volta e meia escorre como meme nas redes sociais, mas que faz muito sentido para quem é daqui ou que já conviveu com algum recifense bairrista por algum momento. Os personagens estão sempre em posição de defesa, sempre reativos, mesmo que discretamente ou de maneira não muito óbvia. Passado em meio a um dos períodos mais brutais da ditadura militar, em 1977, o filme não mostra nenhum soldado, mas a presença do regime está presente nos detalhes e no cotidiano, o que transparece na ambientação de uma sociedade num permanente estado de suspensão.
O roteiro trabalha essa ambientação de maneira muito orgânica, em que cada camada desse horror vai sendo adicionada pouco a pouco. O roteiro é um ponto forte, com uma costura que vai fazendo sentido com o avançar da narrativa, até culminar em uma das sequências finais mais eletrizantes do cinema brasileiro recente. É um filme em que não se dá para revelar muito da trama para não atrapalhar a experiência. É suficiente saber que acompanhamos um ex-acadêmico em fuga, que retorna ao Recife para resolver algumas pendências com o seu passado após ser vítima de uma injustiça. Ele acaba sendo abrigado em uma vila de casas que abriga outros “refugiados” como ele.

A dona desse coletivo é Dona Sebastiana, que é interpretada pela incrível Tânia Maria, a maior revelação desse filme, que tem um elenco muito bem coordenado. Mas há vários outros personagens, que mesmo com pouco tempo de tela, trazem histórias pessoais que nos ajudam a entender o espaço como um polo de resistência. Clóvis, um garoto do interior que foge da homofobia da família, um casal de angolanos (Izabel Zuaa e Licínio Januário) que escapou do regime de seu país e uma mulher que tenta escapar do seu passado interpretado por Hermila Guedes, são alguns exemplos.
Há muitos elementos já trabalhados em outros filmes de Kléber Mendonça que ganham novos contornos por aqui, como o tom de tensão pontuado por uma sonoplastia que remete ao terror clássico dos anos 1970, a trama dividida em capítulos e o humor beirando o nonsense, sempre com referências locais. Mas, evidentemente, a sua maior assinatura é mesmo o Recife como um personagem. Todas as experiências narrativas utilizadas em filmes como Aquarius e O Som ao Redor parecem ter atingido o ápice neste filme, que fazem da cidade mais do que um cenário.
A direção de arte de Thales Junqueira é tão vívida que consegue traduzir com afinco a personalidade da capital pernambucana, com todas as suas vicissitudes, sem soar como uma ode vazia. O tom fantástico ganha forma com a passagem absurda da perna cabeluda, a lenda urbana mais conhecida e que era uma febre popular nos jornais da época.
O Agente Secreto situa Recife como um escape para falar dessas pequenas resistências que fizeram parte do Brasil durante o regime militar, de pessoas que lutaram contra a opressão das mais diferentes formas. Mostra também como a violência dos militares, para além de todo o horror político de crimes cometidos pelo Estado, se instaurou como uma cultura. Da corrupção local dos policiais à violência do poder econômico que visa diminuir o legado de inovação do Nordeste. Esse embate local contra “invasores”, inclusive, é um dos pontos de tensão mais envolventes da trama, que consegue costurar bem essas microagressões cotidianas com a trama maior, até culminar em um final poético e aberto, que aproxima a história para os nossos dias.
Unindo elementos de terror, drama histórico e ação, o filme de Kléber Mendonça é um thriller social, com sequências de fuga e conspirações que aprisionam o espectador até o clímax de maneira muito eficiente.
A ponte que o roteiro constrói com a história passada nos dias atuais, feita de maneira gradativa e que culmina para um epílogo um tanto melancólico, serve para evidenciar que O Agente Secreto é também um filme sobre memória e identidade, o que no fundo é o estofo criativo de toda a filmografia de Kléber Mendonça Filho.
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