Maio de 68 revisitado às vésperas de completar 50 anos

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Exposição sobre a contracultura francesa revive a agitação cultural pós-Maio 68

Da Revista O Grito!, em Paris

A revolta estudantil que se espalhou pelas ruas de Paris em maio de 1968 é ate os dias de hoje um símbolo de luta e liberdade no imaginário de rebeldes e revolucionários do mundo inteiro. As vésperas de completar 50 anos, o movimento, no entanto, vem sendo pouco a pouco revisto e questionado. Do ponto de vista político ele fracassou, pois a derrubada do general Charles de Gaulle e a guinada rumo ao socialismo libertário pretendida pelos seus lideres não aconteceu. Contudo, não se pode negar como o sopro de revolta dos estudantes e trabalhadores franceses inspirou movimentos estudantis e sociais em diversos países e também estimulou a confrontação direta com o capitalismo e o poder político do Estado.

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Livros e filmes tem dissecado o Maio 68 e desmitificado a imagem romântica criada em torno do movimento. O mais recente documentário do cineasta brasileiro João Moreira Salles No Intenso Agora, exibido no festival Cinema du Reel, aqui em Paris, é um deles. A partir de imagens de arquivo, Salles discorre sobre os eventos em Paris e também sobre a Primavera de Praga, embora fazendo uma clara opção por um olhar realista e ate desalentador do movimento.

Mas se alguns lamentam a debacle, outros procuram pensar a rebelião como um dos momentos que integram uma serie de mudanças comportamentais ocorridas a partir dos anos 1960 tanto na França como em outros países ocidentais. E isso parece bem evidente quando nos deparamos com a exposição L’Esprit Francais: Contre-cultures 1969-1989, em cartaz ate 21 de maio, no espaço cultural conhecido como La Maison Rouge, em Paris. A exposição, com curadoria de Guillaume D’Esanges e Francois Piron, propõe reviver de uma forma crítica os vinte anos pós-68 a partir das agitações culturais ocorridas na França no período.

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A audácia criativa ocorreu, sobretudo, na produção artística marcada diretamente pelas ideias surgidas no Maio de 68 que rejeitavam os dominantes valores burgueses e conservadores. No livreto da exposição, os organizadores reconhecem que “foi o pensamento surgido em 1968 que acionou as liberações políticas, estéticas e de modos de vida, tendo como pano de fundo a crise social e econômica”. Para D’Esanges e Piron a geração pós-68 investiu no cinema, no rock, nos quadrinhos, no grafismo, misturando idealismo e nihilismo, humor cáustico e erotismo de uma forma subversiva e insolente. Os artistas “mostraram sua insatisfação crônica muito mais pelo panfleto destruidor do que pelo manifesto, e preferiam a ironia ao bom gosto”.

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A rádio Carbone 14: liberdade de expressão em tempos difíceis. (Foto: Alexandre Figueirôa/O Grito!).

De fato, percorrer L’Esprit Francais é se deparar com obras provocadoras cuja insubmissão estampada revelam as inquietações pessoais e coletivas represadas ate então onde despontam as lutas das mulheres e dos homossexuais, as reivindicações anti-autoritárias e como elas foram se desenvolvendo no decorrer de duas décadas. A riqueza da exposição se revela também quando expande o olhar do visitante para além do campo da arte, introduzindo gêneros da cultura pop ate então vistos como menores, como e o caso dos quadrinhos, dos fanzines e do cinema experimental.

Mesmo para o visitante estrangeiro, o interesse despertado por cada espaço é intenso, pois além da descoberta de experiências radicais e ousadas na Franca não é difícil estabelecer paralelo com o que aconteceu em termos da arte de vanguarda e da cena underground em outros lugares no mesmo período. A mistura de política com arte, os modos alternativos de produção, a futilidade e o hedonismo como expressões do desejo ocorreram tanto lá quanto por aqui.

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Revista Hara-Kiri: gatilho de insubmissão. (Alexandre Figueiroa/O Grito!)

Percorrer as salas da Maison Rouge é (re)descobrir traços de experiências formidáveis como as realizadas pela estação de rádio parisiense Carbono 14, que durante cerca de dois anos levou a liberdade de expressão ao extremo em seus programas com uma linguagem subversiva e sem censura; é recordar o coletivo Grupo Dziga Vertov, do qual fazia parte o cineasta Jean-Luc Godard, e poder ler a versão original do texto Abaixo o Cinema; ou ainda deliciar-se com as iconoclastas revistas Bazooka e Hara Kiri (cuja parte dos autores daria origem ao hoje popular Charlie Hedbo).

Eh certo que alguns dos nomes presentes na exposição como o dramaturgo barroco Copi, o filósofo Félix Guattari e o jornalista e militante homossexual Guy Hocquenghem não são hoje mais percebidos como loucos perigosos. Contudo, vendo o que eles e tantos outros realizaram, da para perceber como nas ultimas décadas tudo ficou tão careta e amorfo.

Se ao menos metade da energia criativa desses artistas e autores se renovasse na geração que aí está, mesmo adequando-se ao contexto atual, talvez o mundo pudesse ficar mais pulsante.

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(Foto: Alexandre Figueirôa/O Grito!.)
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(Foto: Alexandre Figueirôa/O Grito!.)
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(Foto: Alexandre Figueirôa/O Grito!.)
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(Foto: Alexandre Figueirôa/O Grito!.)

* O nosso editor viajou a convite do Consulado da França no Recife.