Em Redacted, de Brian de Palma, batizado de Guerra sem cortes, e exibido no festival do Rio, uma jovem de 15 anos é barbaramente estuprada e morta por soldados americanos no Iraque. No Cinemix, Recife, em cartaz todas as segundas, uma moça sobe ao palco para transar com rapazes da platéia que se colocam em fila para testar seus atributos de virilidade. Entre a guerra do Iraque e a guerra da sobrevivência na noite, a verdadeira vítima nem sempre é fácil de identificar.
Teoricamente, a moça que optou por ter relações sexuais diante da platéia não é necessariamente vítima, apenas uma profissional. Cabe a ela selecionar os melhores machos da espécie e dizer se eles passaram no teste. A relação dominado-dominador se alterna, e o público participa da performance.
A pobre adolescente iraquiana não tem essa opção. Seus algozes tampouco estão interessados em demonstrar sua virilidade pelo sexo, apenas um instrumento casual de dominação, apimentado pelo fetiche adicional das armas. Eles certamente preferem a violência e mal chegam a consumar o ato carnal.
O estupro, pela legislação, só se aplica a mulheres. Está muito mais ligado à questão da concepção, uma vez que a mulher pode engravidar, do que à violência. Rapazes nunca são estuprados, apenas abusados, e as penas sempre foram bem mais leves. Afinal, quem garante que ele não pode gostar… Sobre a mulher também pesa a mesma dúvida, mas o que fazer de crianças geradas a partir destes atos: daí a repressão ser bem maior.
Sem coincidências. Entre uma sala de cinema que não passa mais filmes, apenas espetáculos eróticos ao vivo, entremeados pela exibição de DVDS pornográficos para uma audiência atenta – e o cinema de Brian de Palma, que se vale das imagens colhidas nos alojamentos dos check-points (barreiras) pelo protagonista Angel Salazar (Izzy Diaz), para construir a narrativa com sua câmera de vídeo digital, alternadas por depoimentos colhidos da Internet, qualquer semelhança seria improvável. Aparentemente o primeiro caso convida à interatividade, ao gozo coletivo e sem culpa, ao preço de 6 reais a entrada, enquanto o segundo, de ingresso bem mais caro, nos colhe de surpresa, na cadeira, impotentes, diante da barbárie da guerra.
Vencedor do Leão de Prata (melhor diretor) no Festival de Veneza 2007, Guerra sem Cortes, do diretor norte-americano Brian De Palma, é um dos principais destaques da programação do Festival do Rio, que termina agora dia 9 de outubro, e foi apresentado em sessão especial da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo no ano passado.
De Palma, que já abordou tema semelhante em Pecados de Guerra (89), relatando um incidente ocorrido na Guerra do Vietnã, tem a seu favor a extrema habilidade de identificar uma nova linguagem que nasce do computador e que se confunde com o olhar do diretor. O real na verdade aqui é simulacro, entendido não como espelho, mas como alteridade. No Cine Mix, o simulacro é o real, convertido em fantasia.
O que faremos diante de tudo isso além de zapear para o próximo programa? Tudo convida à indiferença na verdade. O relato que se vale de imagens em HD, baseadas em depoimentos colhidos pela Internet pelo diretor, os soldados entediados de uma guerra brutal ao terrorismo que se divertem matando civis porque não falam a mesma língua. Os rapazes que entram em fila no cinema em busca de diversão e de cinco minutos de fama, num mundo em que o corpo se revela sob todos os ângulos possíveis, despido de qualquer erotismo, convertido não em objeto de prazer, mas em instrumento de poder, tampouco entendem. A moça, de uma nudez vestida, como diria Caetano, serpenteia pelo palco em sua dança acrobática, transformando o ato que já foi classificado como cena inicial em show asséptico, e sem riscos: todos usam camisinha.
Redacted, a guerra sem cortes, é uma palavra inglesa que significa edição, revisão, e que sugere, naturalmente, a ação da censura sobre as imagens oficiais da guerra que vão ao ar pela televisão. A idéia é que, ao ver as cenas reais, sem cortes, o telespectador se daria conta do horror da guerra, a maior violência. Mas, no paraíso do controle remoto, ao alcance de todos, a maior violência é a indiferença, o desprezo pelo outro.
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[+] Luiza Lusvarghi graduada em Letras e em Jornalismo, mestre e doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Como pesquisadora, dá ênfase aos Estudo dos Meios e à Produção Mediática. Atualmente, é bolsista de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde realiza pesquisa sobre estratégias globais de comunicação para a mídia regional no Nordeste.