luisa
luisa

Luísa Sonza e a subjetividade transformada em escândalo

Uma das mais famosas artistas de sua geração, Sonza persegue agora um pop mais complexo e ousado esteticamente. O resultado foi um dos álbuns mais potentes e comentados do ano

Luísa Sonza e a subjetividade transformada em escândalo
3.5

Luísa Sonza
Escândalo Íntimo
Sony Music, 2023. Gênero: Pop

Estávamos em julho de 2022 quando, via o ainda Twitter, a cantora brasileira Luísa Sonza fez um pedido curioso a seus fãs: que começassem a ouvir música brasileira, artistas nacionais como Cássia Eller, Cazuza e etc – caso contrário, eles não a acompanhariam em seu raciocínio nem em sua lógica musical a partir daquele ponto.

O que naquele momento se tornou motivo de diversas brincadeiras e risadas (ora, que qualidade de referência, pensamento e reflexão existiria em singles como “Cachorrinhas” e “Mama.cita”?) era, na verdade, um pedido legítimo feito pela artista, que agora pode, enfim, ela mesma rir de todo esse imbróglio, por ocasião do lançamento de seu novo álbum Escândalo Íntimo, vindo a público no dia 29 de agosto de 2023 e já tido como recorde de números em diversas plataformas.

A despeito das prováveis qualidades e dos potenciais defeitos da artista, uma das principais representantes do maquinário da indústria cultural brasileira atualmente, com o lançamento de seu novo trabalho, todos os interessados pelos estudos e pela crítica cultural ganharam um prato cheio a se deliciar. Tido por muitos como lançamento do ano, a obra-prima da artista, um dos melhores álbuns brasileiros dos últimos tempos, o fato é: por mais que talvez não soubesse disso com clareza, Luísa entregou a seus ouvintes uma verdadeira experiência material e sensorial de seu próprio tempo histórico.

1.

Tal como a cantora propôs em suas redes sociais, nas diversas postagens feitas a respeito de seu álbum, enfatizando a presença de estudos, conceitos e desejos implícitos em toda a trajetória musical que embasa cada uma de suas novas faixas, sua obra parece mesmo feita de blocos e ciclos. Curiosamente, o primeiro deles tem início com a música que também dá título ao álbum: Escândalo Íntimo.

Na foto de divulgação do single, publicada em seu Instagram, a cantora aparece com uma linha de sangue em sua cabeça, o que tende a denunciar a presença de um acidente – um possível trauma, talvez? Ainda que haja muito a discutir a partir daqui, evitando considerações e conclusões precipitadas, já de largada um dado é mostrado de modo claro a todos os ouvintes: ali, já de imediato, todo o público acaba de iniciar um álbum que aparentemente foi escrito a partir das feridas e dores de uma mulher machucada. Não por acaso, a música de abertura, um tanto levada pelo jazz (já inteiramente descontextualizado e fora de suas matrizes originárias, as quais se firmam junto à história do povo negro e dos escravos de Nova Orleans), é toda marcada por uma série de interrupções, por uma estrutura fragmentária que tende a um clímax: apresenta-se, assim, o pico da agonia de uma subjetividade fraturada.

A expectativa se confirma e concretiza no título da segunda das músicas: “Carnificina”. Entretanto, partindo de uma compreensão literal do nome da nova faixa, se há um massacre em curso, algo ainda precisa ser esclarecido a seus ouvintes: quais são as partes envolvidas neste extermínio? quem são elas? a quem a cantora se dirige em seus versos? contra quem ela canta, afinal? e quem é que está contra ela? De qualquer modo, aqui parece interessar menos a especificidade do interlocutor, que afinal não se revela no álbum e não tem voz própria para se manifestar, que a garantia da clareza da identidade daquela que canta: impossível aos olhos da mãe e autodeclarada artista, com o gosto de quem diz o próprio nome de boca cheia, com vogais e consoantes arrastadas. Em suma, o ouvinte logo percebe que acaba de adentrar uma atmosfera em tudo autorreferente, diante da qual cabe se questionar: e por que esta aparente e exclusiva subjetividade despertaria o interesse coletivo, afinal, a ponto de figurar-se em um grande escândalo?

O bloco inicial do álbum se completa com “A Dona Aranha” e “Luísa Manequim”, trazendo de volta aquela que foi uma das grandes faixas de Abílio Manoel durante a década de 1970, ainda considerada como parte da produção romântica do artista português radicado no Brasil, cujas primeiras obras mostravam-se substancialmente distantes do engajamento político percebido na maior parte dos artistas brasileiros do período, especialmente naquele instante de recrudescimento da ditadura militar nacional. É nesta inteligente retomada, ao que parece, que se encontram algumas das dinâmicas estruturais que dão o tom e a melodia exata de todo o álbum de Sonza. 

Casando samba e rock, levando a música popular brasileira ao patamar das estruturas do rock e do pop internacionais, Luísa parece remontar um dos maiores dilemas vividos pela música nacional no início da segunda metade do século XX: o que parecia pura implicância acerca do uso de guitarras elétricas nas originais composições daqui na verdade traduzia um problema muito maior e mais relevante: o que estava em jogo naquele momento era a internacionalização da música brasileira, então transformada puramente em produto e ideologia, marca de um pós-modernismo enfim construído e solidificado na periferia do capitalismo. É nesse mesmo interregno, já com toda a distância e os desdobramentos históricos que dali decorreram, que o álbum de Luísa se firma e ganha em matéria e potência.

A cantora, que agora se autointitula como “hipócrita fazendo birra” e que enxerga todo “o mundo girando em sua volta”, não parece deixar dúvidas sobre novo seu projeto e plano cultural ao lançar “A Dona Aranha”. A música, juntando trechos em português e inglês, retoma a imagem já firmada de cantora pop da artista e vende-a em todos os espaços e redes sociais, com refrão e coreografia marcantes. Quando ouvidas em conjunto, uma após a outra, tal como propõe a estrutura do próprio álbum, “A Dona Aranha” e “Luísa Manequim” revelam a verdade de todo o trabalho atual: agora, mesmo na sua aparente intimidade, Luísa Sonza pode mesmo se declarar como representante de uma época – esta em que, sem qualquer sinal de engajamento, o que importa à música é apenas sua capacidade de repetição no imaginário coletivo (de preferência, com alguma coreografia de apelação popular). Ora, não parece curioso que, em meio a tantas músicas, a tantos conceitos e estruturas constantemente enfatizados por toda a produção, tenha sido justamente nesta música a aposta primeira de Luísa e de seus colaboradores, com lançamento de uma sequência coreográfica um dia antes de seu retorno aos palcos, atendendo exatamente às expectativas do público?

Querendo-se diferente e inovadora, em seu primeiro bloco Luísa Sonza segue mantendo exatamente a mesma imagem artística que construiu até aqui: representante do mainstream pop e de todo o maquinário da indústria cultural. Enfim, todo o discurso violento de “Carnificina”, de quem aparentemente “vive na base do soco”, carente de maiores especificações e esclarecimentos, não se completa e cai no vazio. Não por acaso, na mesma música a artista enfatiza que “Tudo para mim é pouco”. Ora, é claro que sim! Justamente por generalizar todos os materiais e colocá-los a serviço apenas de uma nova mercadoria sonora, tudo equivale a absolutamente nada, desmoronando no contrário do que de início apresentava a seus fãs em suas redes sociais: aqui, o álbum não aparece imerso em conceitos e pesquisas, mas emerge de um completo vazio de ideias e coisas, no qual tudo e nada, muito e pouco são apenas abstrações sem qualquer respaldo na materialidade dos processos sociais.

2.

O segundo dos blocos possui um interlúdio: em quase trinta segundos, a voz da cantora anuncia que, bêbada, se declarou a alguém que mal conhecia e o convidou para sair. Nada mais clichê – e, por isso mesmo, nada mais fácil de causar qualquer identificação imediata com seu público ouvinte, sem qualquer resquício de mediação feita pelo pensamento ou por alguma necessidade de interpretação. O que segue daí é apenas a confirmação do que havia sido anunciado: “Romance em cena” e “Campo de morango” são a descrição exclusiva de um sujeito tomado pela libido e pelo sexo, a ponto de se autodeclarar uma “vagabunda na cama”.

O que parece apenas mais do mesmo de uma artista que, indiretamente, havia se apresentado como a síntese do processo histórico vivido ao largo do século 20, do qual o que se concluiu foi a ascensão da arte enquanto pura mercadoria, permitindo a desmontagem rápida de qualquer discurso ideológico que tente lhe garantir e assegurar o mesmo lugar que ocupara outrora nos primórdios da estética burguesa, ganha outros e novos contornos com “Surreal” e “Iguaria”, dois pontos altos do álbum. Aqui, em letra e melodia, a artista tem duas de suas maiores faixas e produções dos últimos tempos. A ela mesma, é como se provasse ser possível falar e tratar das mesmas matérias de formas distintas – agora, com inteligência e sagacidade. Em ritmo e riqueza de imagens poéticas, enfim o álbum ganha em sonoridade, melodia e ritmo – as mesmas ferramentas que tornam possível a poesia, enfim, e que enchem de beleza o álbum como um todo.

Reverberando um tanto dessa conquista, vem à tona aquela que tem sido a faixa mais aclamada de todo o álbum: “Chico”. Para além dos paralelos mais imediatos entre o que se canta e a vida pessoal da artista, entre a letra da música e seu mais recente envolvimento amoroso – inclusive, vale questionar: até quando a vida pessoal de um artista será utilizada como porta de entrada para a análise e a qualidade de sua obra? –, um outro paralelo é claramente perceptível e tornado possível: e se o Chico a quem se canta fosse outro Chico, o nosso Chico Buarque, herança e patrimônio da cultura nacional, que compôs a música “Folhetim” em 1977, interpretada por Gal Costa, com musicalidade similar à de Luísa e até praticamente um mesmo verso – não é quase inevitável o paralelo entre “Chico, se tu me quiseres/ Sou dessas mulheres de se apaixonar” e “Se acaso me quiseres/ Sou dessas mulheres que só dizem sim”? Mais uma vez, Luísa ganha ao se aproximar de uma referência antiga, para concretizá-la em um novo tempo, em uma nova matéria, com novos recursos e outras marcações de feminilidade.

A propósito, não seria esta referência muito mais bonita e rica em análise e profundidade crítica que a de um envolvimento amoroso, concernente à vida particular da artista? Entretanto, ao que parece, como sintoma e fórmula do tempo presente, mais uma vez a singularidade é preferível à coisa pública; a inteligência dá lugar ao afeto; a cultura e a racionalidade cedem seu posto à identificação imediata potencializada pelas redes sociais – o que comprova a sagacidade e a inteligência de Luísa ao transformar em escândalo público as arestas de sua individualidade.

Aproveitando este caminho e suas possibilidades de identificação, “Onde é que deu errado?”, “Penhasco2” e “Outra vez” ganham seus respectivos contornos. A “dor que arranha e arranca a paz”, “o grito para abafar a dor”, à qual “se apega” a cantora, e a imobilidade de quem “tenta andar mas não sai do lugar” parecem enfim a matéria dessas músicas que, mais uma vez, sem qualquer especificação que possibilite o debate, deixam apenas uma questão a quem as ouve: afinal, do que se lamenta a artista? Ao sublimar sua dor a outro plano e patamar, ao transformá-la em música, Luísa esqueceu-se apenas de especificar os motivos e os disparadores de seu sofrimento, sem os quais sua lamentação fica vaga e perdida num vazio, como um elogio da dor e da angústia – exatamente o que lhe permite, portanto, ser adaptável a qualquer coisa ou circunstância, razão pela qual as três músicas supracitadas tendem a ganhar fácil respaldo de seus ouvintes – e tudo isso sem contar o fato de que uma delas é também uma parceria com Demi Lovato, artista internacional de uma peculiar e significativa trajetória que, no entanto, não será objeto de discussão neste texto.

3.

Ainda que haja algumas músicas não lançadas e que também compõem a completude do Escândalo Íntimo de Luísa Sonza, como este texto foi escrito no dia 08 de setembro, a imaginação do leitor pôde acessar apenas três das quatro partes em que se divide toda a obra. Então, por ora imaginemos que o terceiro e último dos blocos de Luísa tenha início com “Interlúdio – Dão errado”, faixa na qual os conhecidos acordes de Vanessa Mata são todos modificados para que seu refrão ganhe em densidade e sirva como mais uma possibilidade de acesso para o interior de uma subjetividade amedrontada, agora de respiração ofegante e arrastada, com gritos extremamente distorcidos. Aqui, o que deveria funcionar como citação artística e até mesmo como uma potencial ampliação de vocabulário poético e crítico transforma-se em ausência de referente: a voz abafada impede não só a clareza da identificação da voz de quem canta, mas também de todo um ciclo histórico de apropriação que já não se completa e contextualiza, firmando-se apenas como pastiche de um mesmo e único tempo presente, o que alguns teóricos e filósofos há algum tempo já vêm chamando de presentismo, conceito que finalmente teria encontrado sua máxima transposição e figuração artística junto aos sonzers.

O que vem daí, de uma artista que, em “Principalmente me sinto arrasada”, problematiza toda sua obra e projeto, a ponto de se perguntar “Que caralho eu tô fazendo dando essa rimada?”, é a reação a toda a dor apresentada anteriormente. Ao que parece, aqui se encontra uma outra das chaves analíticas necessárias para compreender todo o novo projeto da artista. Se é verdade que ela já “não podia mais abrir mão de si mesma”, é possível afirmar que a partir daqui teria início um novo momento de sua carreira? Se tudo que foi feito anteriormente era apenas resultado de uma loucura extravagante, como a cantora tanto afirma em “Lança menina”, então “A Dona Aranha” seria na verdade um ponto final, a exata parte de um projeto de transição daquela artista que um dia se tornou uma das maiores representantes do mercado pop nacional, com “Atenção”, “Anaconda”, “Boa menina” e “SentaDona (Remix)”? Para onde estaria Luísa indo, então? Ao agradecer por “tudo que foi vivido”, mesmo que não se saiba a quem o agradecimento é feito, a cantora de fato parece iniciar um novo percurso, já “à beira da loucura”.

Retomando parcialmente o mesmo dilema totalizante de “Carnificina”, no qual tudo ainda era muito pouco, aqui a artista diz com todas as letras: “Eu fiz tudo que eu pude” – o que lhe sobrou, então? Seu Escândalo Íntimo é apenas reflexo de um sujeito cansado e machucado por seus próprios caminhos? Seja como for, antes de finalizar esta estrada e trajetória, Luísa parece apostar na ampliação de seu campo e processo, agora cantados também em inglês, como signo de uma artista em ascensão, ainda não inteiramente disposta a largar por completo dos privilégios adquiridos.

Luisa
Luisa Sonza no clipe de “Penhasco2”. (Reprodução).

Seguindo pela ordem das músicas e faixas apresentadas no álbum, chega-se inevitavelmente àquele que foi o maior dos erros acertados da artista: a parceria com Duda Beat. Saindo de toda a obscuridade anterior, numa transição rápida e imediata, “Ana Maria” é uma música de completa positividade, de um sujeito que agora está “de bem com a vida” e que enfim nota que deve “estar crescida” depois de “um tempo doída”. É da boca de Duda Beat que sai o pior dos aprendizados de toda a trajetória: “Asseguro/ Melancolia é ruim”. Ora, qualquer estudo minimamente detido a respeito da história deste afeto há de compreender que a melancolia já foi vista de muitas e das mais diversas maneiras ao longo dos séculos. Houve um tempo até em que o sujeito melancólico era aquele que vivia em desajuste com a sociedade e, por isso mesmo, era ele o ponto de partida para onde convergiam as maiores e mais verdadeiras criações artísticas de seu tempo. A necessidade de negativar por completo este afeto só pode ser decorrência direta de um tempo no qual a felicidade precisa ser produzida a todo custo, num completo vício neoliberal pelo prazer e a euforia. Não por acaso, a consequência mais imediata deste processo é justamente o contrário do que se anuncia: a produção em massa de sujeitos depressivos e sem perspectivas futuras – razão parcial, também, do sucesso do álbum novo de Luísa Sonza.

Ainda a respeito de “Ana Maria”, é preciso destacar a existência de uma outra hipótese, na qual a melancolia evitada pelas artistas continuaria presente enquanto afeto e substância que atravessa todo o álbum, de modo que a felicidade e a coragem repentinas de Luísa e Duda Beat seriam apenas uma parte do próprio ciclo melancólico – aquilo que os psicanalistas poderiam assinalar como mania. Contudo, para averiguar a veracidade deste comentário, será preciso observar de perto todos os próximos lançamentos da artista, bem como a linha de continuidade de seu projeto musical. Sem isso, toda e qualquer observação será apenas fruto de imaginação ou desejo de defender aquilo que ainda não existe com propriedade. Em suma, a fim de evitar a abstração pela abstração, talvez seja melhor não usar os mesmos recursos de Escândalo Íntimo contra ele próprio – ao menos, não sem antes ressignificá-los.

Todavia, ainda há algo que pode, sim, ser feito. Para quem constantemente “tropeça no que diz”, como a artista confessa ser o seu caso em “Não sou demais”, o álbum todo, tanto em forma quanto em conteúdo, pode ser colocado em xeque: sendo a própria artista quem “cava seu próprio abismo”, todo o embate presenciado ao longo das faixas, já previsto e anunciado logo na música inicial, não necessariamente parece exigir alguma alteridade, mas se concretiza apenas como o diálogo confuso e perturbado de um sujeito consigo mesmo; da mente completamente incerta e caótica de um sujeito que faz de si mesmo palco e plateia para todos os conflitos.

Por tentar sustentar todo o álbum em apenas uma perspectiva puramente subjetiva, Luísa reduz todo seu discurso às lamentações e dores de um sujeito agoniado, querendo encontrar na particularidade de seu discurso a amplitude de um escândalo e a provável universalidade de tendências gerais, guiadas por um enfrentamento com um Outro que, no decorrer das faixas, o ouvinte logo percebe como um ser meramente imaginário – como se Luísa cantasse sobre o vazio, para o vazio e a partir do vazio. Faltando-lhe matéria relevante para traduzir em acordes, tudo que lhe sobra são clichês facilmente construídos, mas rapidamente passíveis de desmontagem, ainda que com sucesso de público.

Como se pode imaginar, toda esta máquina comercial sonora só pode ser possível em um tempo de completa desmontagem da coisa pública, em prol de uma subjetividade sempre errante e lacunar, uma vez que sempre se apresenta desconectada do coletivo e de qualquer estrutura social. O declínio das instituições e de qualquer perspectiva coletiva é justamente o que possibilita o nascimento do novo álbum de Luísa, artista que, distante de qualquer sinal de engajamento, reduz suas criações à mera individualidade, vendendo a si mesma como objeto de interesse e recurso criativo.

De qualquer modo, é no fim do álbum que algo daquela transição de imagem e identidade de Luísa fica claro a quem escuta o conjunto por inteiro: se a artista reconhece ter enlouquecido para acompanhar o fluxo ordinário das coisas, é na polifonia junto à Rita Lee, intérprete que já havia aparecido indiretamente em faixas como “Iguaria”, consumando a ideia de um “amor por telepatia”, que a artista parece esboçar sua nova identidade, como intérprete e representante da cultura nacional. Não mais apenas um ícone pop de coreografias reproduzidas pelo chão das boates e casas noturnas do Brasil, a artista agora pretende se vender como parte de uma cultura muito maior, da qual ela aparece como reflexo mas também como síntese histórica. Entre o desejo de ser tão grande como Rita Lee e tão potente quanto uma Bille Eilish, a artista constrói sua nova identidade que, por ora, ainda é caótica a sua equipe, seus fãs e ouvintes – algo de que sua apresentação no The Town, no dia 03 de setembro, foi o reflexo e o resultado mais imediato: ora, como criar uma trajetória e uma transição de “Chico” para “Anaconda”? A pergunta é complexa, mas Luísa Sonza parece ser mesmo parte desta importante resposta que a cultura nacional ainda precisa encontrar.

4.

Em tempo: vivendo no império de ser fã ou hater de alguém, perdeu-se de vista a ideia de que se pode ser fã e hater ao mesmo tempo – e talvez seja este mesmo o trabalho da crítica cultural. A Luísa Sonza, que no dia 01 de setembro fez uma reclamação em seu ainda Twitter, dizendo que seus fãs não haviam entendido o significado de uma das faixas de seu álbum, resta dizer: não há interpretações preestabelecidas às obras de arte! Inclusive, por vezes, os artistas fazem coisas que eles mesmos não imaginavam nem previam; por vezes, eles mesmos não conseguem acessar com profundidade a imanência de seus próprios objetos e criações. Nosso trabalho, enquanto críticos, é justamente o de revelar todas essas potências e fragilidades que se escondem atrás da aparência de uma obra fechada e autônoma. Todavia, isso só é possível diante de objetos que despertam a curiosidade e o interesse pelo uso inteligente de suas ferramentas e materiais. Por vários motivos, isto é exatamente o que faz Escândalo Íntimo. Também por isso, suas merecidas colocações em vários rankings e enquetes, no Brasil e no mundo. De fato, ao que parece, com todos os seus defeitos e qualidades, Luísa Sonza acaba de criar um dos mais potentes álbuns dos últimos anos.

Leia mais críticas de música